São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 1997
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'O Gosto da Cereja' é amargo

INÁCIO ARAUJO

Crítico de Cinema
Se houve política na premiação de Cannes 97, e houve, ela não visou chamar a atenção para a luta dos cineastas (e outros) contra a censura (e outros) no Irã.
Ou seja, "O Gosto da Cereja" não dividiu a Palma de Ouro com "A Enguia", de Shohei Imamura, por razões extracinematográficas (sabe-se que "O Gosto da Cereja" quase foi proibido de participar do evento pelas autoridades iranianas).
A atitude do júri foi política, sim, mas por retomar a tradição de dar até mesmo o grande prêmio do festival a filmes com produção pequena, mas imensamente fortes, como no caso desse trabalho de Abbas Kiarostami.
O júri foi tão mais corajoso porque dessa vez Kiarostami veio um tanto mudado. Até aqui, seus filmes nunca descreviam um mundo feliz. Havia pobreza, terremotos, angústia. Mas, a todas as vicissitudes, o cineasta sempre contrapôs a força da vida.
Graças a ela, seus filmes costumam ser banhados de um vislumbre eloquente de felicidade, que nos toca e contagia (embora no Brasil seus filmes não sejam muito bem aceitos, em parte porque a política de exibição, voltada apenas para o cinema americano, está arruinando o gosto e a simples capacidade de olhar). "O Gosto da Cereja" vai em outra direção.
A história começa com um homem, em seu carro, à procura de homens. Seria paquera? Leva jeito. A busca leva meia hora, ou quase. Em todo caso, esse aspecto homossexual é ambíguo e discreto.
Ao fim de certo tempo, o homem revela a razão de sua busca: quer se suicidar e procura alguém que enterre seu corpo após a morte.
Mesmo na cópia em vídeo (a única que a 21ª Mostra pôde fornecer antecipadamente), é possível perceber que a ambientação criada pelo diretor é diferente dos filmes anteriores. Tudo é desértico, árido. A natureza é agônica, embora o rosto do homem permaneça sereno.
O filme então pode ser visto assim: um homem pretende se matar, violando um tabu religioso (não só muçulmano), e quer se matar porque é homossexual, outro tabu (não só muçulmano).
Não se trata, portanto, de um filme do encanto, mas do desencanto. E, ainda que o gosto da cereja seja mencionado (não efetivamente sentido), é um filme do desgosto. Não é o Irã infantil ou adolescente que já se viu no passado. É um país que chega à idade adulta em ritmo de serviço militar, com relações pessoais deterioradas pelo medo e por superstições que tornam o outro incompreensível.
É tão diferente assim em outros lugares? Isso é o que parece se perguntar Kiarostami, pois seu filme tem dupla função. Internamente, ele é efetivamente político. No exterior, porém, não funciona como cinema "de denúncia". Ao contrário, parece procurar afinidades na depressão.
Dessa vez, Kiarostami nos conduz por paragens pedregosas, embora, o que é essencial, sem perder o sentido da beleza. Há momentos em que o protagonista senta-se diante da paisagem árida. Então, para o espectador, a idéia de suicídio parece absurda: como abandonar a vida voluntariamente, quando, mesmo no desespero, a beleza e o gosto da existência podem ser entrevistas em cada coisa?
"O Gosto da Cereja" é, enfim, aquilo que mostra: um filme amargo, ao qual nossa imaginação pode acrescentar o gosto doce e a cor vibrante do fruto apenas evocado.

Onde: amanhã, às 19h10, no Masp - Grande Auditório

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