São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Extremos de desespero e júbilo

Antologia traz a poesia capital do italiano Eugenio Montale

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um século e um ano após seu nascimento, 72 e 22 anos, respectivamente, depois da publicação de sua primeira -e, desde então, célebre- coletânea, "Ossi de Seppia" (1925), e de seu Prêmio Nobel, o poeta italiano Eugenio Montale, morto 16 anos atrás, chega, numa seleção generosa, ao Brasil.
Montale está entre as vozes mais centrais deste século e, no âmbito de sua língua, só compete pela primazia absoluta com um contemporâneo igualmente longevo, Giuseppe Ungaretti (1888-1970).
Ambos os rivais têm seus partidários encarniçados, mas, como em todos os outros casos semelhantes de oposições aparentemente irreconciliáveis (Eliot x Pound, Mário x Oswald, Vallejo x Neruda etc.), ninguém precisa levar sua rivalidade muito a sério e qualquer leitor inteligente ganhará mais frequentando a ambos.
A poesia deste italiano que pretendia de início ser cantor de ópera (paixão que reteve até o final da vida), que lutou como oficial na Primeira Guerra, que ajudou a salvar dos fascistas o maior poeta judeu de seu país, Umberto Saba, e que se tornou senador vitalício na velhice, a poesia de Montale não pertence às categorias com que os leitores brasileiros já se habituaram.
Herdeiro de Dante Alighieri e de Leopardi, a concisão rarefeita, o horror ao discursivo, a busca de imagens luminosas e perfeitas, o apego aos índices epidérmicos da modernidade, bem como ao sublime e à epifania -nada disso caracteriza seus versos. Isso mesmo: versos. Pelo contrário: sua abordagem é quase sempre argumentativa e ele raramente tem pressa de arrematá-la com alguma surpresa (embora não faltem, em seus poemas, as surpresas) ou algum "non sequitur" (se bem que a lógica de seu discurso seja bastante peculiar). Aliás, é na capacidade mesma de argumentar, de serpentear entre os extremos do desespero e do júbilo, que está a grandeza de seu estilo. Nisto, se há em nossa tradição algum poeta cujas características sirvam de paralelo (ainda que remoto) ao italiano, esse é Drummond, sobretudo o de "Claro Enigma".
Descendente que é, em linha direta, de Dante (e, por intermédio dele, dos latinos, principalmente de Horácio, não só o das "Odes", mas também o das "Epístolas" e "Sátiras"), Montale pareceria, num contexto cujas expectativas fossem explicitamente de vanguarda -surrealista, expressionista ou construtivista-, uma avis rara, uma "avis" voluntariamente "rara" porque seu ponto de partida é uma reação a tais tendências, em especial ao ideário do futurismo italiano.
No entanto, ele filia-se a uma outra vertente moderna, igualmente respeitável, que, só por conveniência, poderíamos chamar de "classicizante", vertente que, de Caváfis e de certo Pessoa, chega, passando por Rilke, Mandelstam, Eliot (com seus famosos versos dantescos em "little Gidding", no final dos "Quatro Quartetos") e o próprio Drummond (também revisitando Dante -e Camões- em "A Máquina do Mundo"), a poetas recentes como Joseph Brodsky (um admirador que imitou maravilhosamente a primeira "Xênia" de Montale).
Ao italiano não cabe, portanto, o epíteto de "modernista radical", ou qualquer coisa semelhante, mas ele é, mesmo assim, moderno, e é por meio do poeta da "Divina Comédia" que tal modernidade pode ser definida, pois o autor de "Ossi de Seppia" revela-se basicamente um poeta purgatorial, avesso tanto ao som e fúria do inferno (a guerra de 1939-1945 está praticamente ausente de sua obra) quanto aos neons paradisíacos.
Montale é um poeta extremamente discursivo e que, além disso, compraz-se na sua habilidade de conduzir com elegância e sobriedade seu discurso não só aonde queira chegar, mas também fazendo-o passar por cada qual dos pontos que julga relevantes. Nem por isso o "understatement" é alheio ao mais anglófilo dentre os poetas peninsulares, só que ele não anuncia a todo instante algo como "Atenção: aqui há um subentendido".
O refinamento de sua discursividade, sua visão sóbria do mundo, o fraseado complexo e o instinto para o "mot juste" flaubertiano que fariam de seu texto, se não fosse grande poesia, ótima prosa, o equilíbrio muito mais difícil de se obter com as centenas de palavras que usa do que com a meia dúzia que há num poema minimalista, tudo isso está preservado na tradução brasileira realizada por Geraldo Holanda Cavalcanti. Que o tradutor tenha conseguido reproduzir essas características já é em si mesmo meritório e merecedor de gratidão. Assim, diante do imenso esforço realizado, talvez pareça ingrato reclamar de outro, que não foi feito.
Grande parte dos poemas de Montale é metrificada e rimada. Que um poeta cujo livro de estréia foi publicado um ano depois do primeiro "Manifesto Surrealista" tenha feito e sustentado tal opção até seus últimos livros, nada tem de acidental ou irrelevante. Os franceses professam atualmente um horror às formas fixas e os anglo-americanos inventaram uma versificação própria, que não é tradicional nem livre, mas tem rendido bons resultados.
Nossa poética, porém, ainda mais em se tratando de um poeta que escrevia numa língua e numa tradição tão próximas, requereria, na tradução, uma resposta às dificuldades formais propostas pelo autor. Ao traduzir "Godi Se Il Vento ch'Entra nel Pomario" (em "O Torso e o Gato"), Ivo Barroso provou que esse esforço, possível e necessário, faz diferença. Estas ressalvas, naturalmente, não desmerecem o empenho do tradutor, que nos presenteia com um Montale digno, e são antes uma sugestão ou desafio a ele mesmo e aos outros que enveredem pelos caminhos agradavelmente tortuosos de Montale.

Texto Anterior: A SÍNDROME DAS BANANAS
Próximo Texto: FICÇÃO; NÃO-FICÇÃO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.