São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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Instantâneos do movimento

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na dança dos nomes da cena literária anglo-americana, Robert Creeley, 71, afirma-se a partir do pós-guerra, ligado a um grupo de poetas (como Charles Olson e Robert Duncan) que orbitou em torno do Black Mountain College, na Carolina do Norte. De lá, saíram revistas de ponta, caso de "Origin" e da "Black Mountain Review", que, em meados dos anos 50, abrigaram uma reação ao modelo de poesia encarnado por Eliot, marcado pela releitura do mito e pela valorização do que havia de engenhoso em suas imagens complexas.
Para o Brasil, seu passaporte é o volume organizado e traduzido por Régis Bonvicino, "A Um (As One) - Poemas de Robert Creeley", bilíngue e com extenso dossiê documental, recolhendo depoimentos, ensaios críticos, discutindo as opções do tradutor.
O objetivo comum destes poetas-professores de Black Mountain era o de restituir alguma imediaticidade e intimidade não-confessional ao discurso poético, aproximando-o da fala não pelo léxico, mas pela prosódia. Implicava desarticular o verso em nome de um respeito maior ao impulso perceptivo que dispara o processo, em buscar, na respiração do texto, a possibilidade de comunicar este impulso ao leitor.
A opção pelos pretextos cotidianos, a recusa do labirinto metafórico e alusivo, dos ritmos graves e sublimes, carregados do peso da tradição herdada e postiça em nome da proximidade coloquial, apontaram com o objetivismo de Williams -referência simultânea ao olhar fotográfico de sua poesia e ao tratamento do poema como coisa feita de palavras, máquina de linguagem.
No caso de Creeley, os poemas evoluíram para um objetivismo corrigido pela introspecção, registrando, com a atenção de fenomenólogo, as oscilações do espírito em resposta aos estímulos exteriores ("A mulher que/ saiu da sombra// das árvores perguntou/ depois de um tempo 'que horas são?'// seu rosto/ por um segundo// em minha cabeça/ estava lá de novo// e eu de novo senti/ como contra este vazio// onde também/ eu estive", "De Novo").
A forma encaminhou-se para um minimalismo emagrecido de metáforas, costurado por uma sintaxe não-discursiva, cujo núcleo é a observação da passagem da percepção à voz ("Coisas simples/ alguém quer dizer/ como, qual o dia/ como, lá ao longe-/ quem sou eu/ e onde", "Fala").
A linguagem se define em movimento análogo ao do próprio sujeito: ambos ganham corpo aqui e agora, confirmam-se e conhecem-se na cena breve anotada. Daí a atenção especial dedicada aos dêiticos: aqui, agora, lá, cá, verdadeiros personagens desta lírica só ossos. Os pretextos exteriores são mínimos, paisagem de convenção ("Pequena/ casa com/ pequenas/ janelas...", "Retrato") que se quer renovada pela presença única, universalizante e concretizadora, instantânea. É a fotografia, captura do fugidio a serviço da expressão reflexiva, narcísica, a imagem mais constante desta poesia, cisterna prenhe de ecos, carregada de sentidos, que não apenas imobiliza e apreende a alma, mas a interroga, forja o sujeito ao confrontá-lo.
O foco da poesia de Creeley são os movimentos do espírito em resposta aos jogos de luzes, de sombras, de coisas e lugares, compondo-se numa figura fixada pelos jogos de palavras, tradução particularizante do abstrato e caleidoscópico "self".
Mas, como todo processo de simplificação da forma na arte moderna, tem um lado intrigante e paradoxal, que se demonstra na inflação de discursos interpretativos a que convidam. Poemas como "Retrato", com sua paisagem de folhinha, ou "Não muito" ("não muito você nunca/ disse você estava pensando/ nisso, não muito a/ dizer em suma"), em que o esgarçamento das imagens, do material trabalhado e da forma são máximos, acabam, paradoxalmente, estimulando uma leitura metafórica.
É como se sua fuga do clichê e da generalidade da má inquietação metafísica (má para a poesia, porque inespecífica) dependesse da retórica externa, recusada pelo poema, para se afirmar. A leitura metafórica volta pela porta dos fundos, o vazio criado a custo, entrelugar de encontro de coisas com idéias, pode ver-se ocupado por significados cristalizados. Deve o leitor descobrir o que fica de seus instantâneos, se a "mulher (que) passa/ à margem da/ casa, virando// a esquina, deixa/ um vivo sentido,/ depois dela,/ de ter estado lá" ("Foto") ou suscita apenas o registro banal de uma impressão subjetiva, linguagem assimilada e corriqueira.

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