São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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Dor e bom humor

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"Lição Invisível", livro de contos de Luci Collin, é uma prova de que dor, rigor e bom humor não apenas rimam entre si como também podem misturar-se no mesmo compasso.
Logo de cara temos "Errata", o primeiro dos 12 contos da autora. Trata-se, com efeito, de uma errata distribuída a espectadores de um circo, com correções de falhas presentes no programa a eles entregue na entrada.
Leia um pequeno trecho: "Em princípio, amigos da Casa, onde se lê 'frivolités', leia-se, por favor, 'a mensagem, é o meio'; onde 'Norma Jean Backer', leia-se 'Marilyn Monroe' e onde 'é mais que evidente que eu te amo' leia-se simplesmente 'são deveres do vassalo'. Erramos, sim, erramos: onde se lê 'Le Père Noel', leia-se 'Billy Holliday' e onde 'Mr. Smile', esqueça". Assim em diante.
Collin se utiliza às escâncaras da ironia e consegue, com isso, efeitos surpreendentes. Quando acopla tal ironia a outro recurso, o da metalinguagem, adotado sem sisudez ou esnobismo, produz trechos deliciosos.
A certa altura de "Os Ossos e o Ofício", por exemplo, o exame de sangue de um tal Sr. Escritor Desconhecido mostra os seguintes resultados: "175 mg/dl de narratividade literária; 47,8% de teoria dos grafos; 102 mg/m de semiótica textual; 5,02 X 1 0. Torr de onomassemasiologia; 1.500.000 U.I. de prática epocal; e Traços de núcleos operativos". É no mínimo divertido!
Com vários livros de poesia publicados, a autora procura transplantar para a prosa a sua experiência com a sonoridade das palavras, o que acarreta combinações chamativas e, por outro lado, tratamento próprio na pontuação.
Assim, em "Tantos de um Dois", lemos: "Pode descer as escadas arrastando seu manto de estrelas. Seu nobre missal de verdades; pode ir. O que já vem consagrado me seduziria jamais. Vai se estabelecer que isto é apenas um sem dor um sem nada, você e as escadarias que nunca mais acabam mas que sim".
A principal "lição invisível" propiciada pelos contos de Collin é a de que ainda vale a pena brincar com as palavras, desde que com inteligência. E isso em que pese o desgaste que algumas décadas de predominância da metalinguagem na criação literária causaram nesse tipo de figura de linguagem.
Encontros amorosos, reminiscências mais ou menos doloridas, saudade -todo tema serve de pretexto para a autora exercitar-se, no mais puro artesanato redacional.
Tal aposta no lúdico corre o risco de tornar repetitiva ou entediante a leitura, principalmente para leitores não familiarizados ou não dispostos a entrar nesse terreno. Foi, quem sabe, pensando nisso que Luci Collin fez na verdade um volume miúdo, com menos de 50 páginas. Consciente ou não, foi medida acertada, porque mais páginas nesse tom seria algo realmente enjoativo.
Certamente não estamos diante de uma obra-prima, e seria até mesmo imprudente afirmar que se trata de um grande livro. "Lição Invisível", porém, é uma expressão vigorosa da tentativa de toda uma geração ainda imberbe de novos autores no sentido de, dialogando com seus predecessores mais recentes, e não simplesmente ignorando-os, sair às claras em busca de seu próprio caminho. Serve de alerta aos que vêem na atualidade apenas água parada, repetição, impasse. E isso, convenhamos, não é nada pouco.

E-mail: bera@uol.com.br

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