São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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Marx, a moral burguesa, Gugu e a boquinha da garrafa

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

Um amigo que respeito muito (omitirei seu nome) andou espinafrando em conversas privadas o moralismo pequeno-burguês que, segundo ele, andou pipocando neste espaço quando tratei dos programas que promovem, no meio da sua salada de variedades tolas, concursos de pimpolhos dançando na boquinha da garrafa ou "brincadeiras infantis" assemelhadas.
Generoso, como só os bons amigos costumam ser, esse meu camarada me colocou em companhia nobre. Disse que, assim como o velho Marx, eu também incorria nos piores preconceitos pequeno-burgueses em matéria de costumes a pretexto de duelar contra a Moral Burguesa (com maiúscula) no campo da grande arena, digamos, política.
Que Marx tenha se deixado contaminar pelo puritanismo vitoriano da época em que viveu é fato sabido que não causa espanto. De qualquer forma, a Europa novecentista tem pouco ou nada a ver com o Brasil de Xuxa, Tiririca, Faustão e Gugu Liberato.
Hoje não tem o menor sentido falar ingenuamente em moral burguesa, até porque a civilização que a engendrou se autodestruiu, materialmente inclusive, no início do século. A sociedade de massas que a sucedeu, da qual nós, tupiniquins, somos uma espécie de fratura exposta, é, cada vez mais, pragmática e volátil em termos de valores. Oscila entre o moralismo mais tacanho e autoritário e a permissividade absoluta em relação às piores aberrações (olha o moralismo aí, nesse termo capcioso, diria meu amigo).
Os EUA, como sempre, dão os parâmetros. Inventam, por um lado, uma videolocadora como a Blockbuster, um templo da família, onde filmes pornôs são proibidos; mas produzem, por outro, pencas de "Jennifers" infláveis e todo uma variedade de produtos "eróticos" para atender às taras secretas de papai.
A TV brasileira, mal comparando, reproduz a seu modo esses extremos de comportamento, aliás complementares. Faustão e Gugu, por exemplo, ora atuam para contemplar a família Blockbuster e ora liberam as portas da sacanagem. Quem regula esse movimento pendular não é nenhuma moral burguesa, mas a velha mão invisível do mercado, já que o sexo, nas suas mais variadas formas, foi há muito incorporado ao elenco de "assuntos" passíveis de exploração mercadológica.
Não há, infelizmente, muito o que fazer. De nada adianta sair por aí com o Estatuto da Criança e do Adolescente nas mãos para exigir que Gugu se emende. No país da chacina da Candelária isso beira o escárnio. Como proibir, aliás, como pretendem até algumas boas almas progressistas, que uma menina de quatro anos dance na boquinha da garrafa se os seus pais consentem e até estimulam esse comportamento? A não ser que uma próxima brincadeira de auditório obrigue alguma criança a engolir uma dessas garrafas no palco, teremos nós que engolir esse belo espetáculo que a TV nos dá resignados, embora esperneando.
O velho Marx, que afinal acreditava no progresso da humanidade, disse certa vez, num de seus acessos burgueses: "A tarefa da história universal até agora é a educação dos cinco sentidos". Também nesse ponto já não podemos repeti-lo. Mas seria bom, ao menos na hora de exercer a crítica, que pudéssemos ser apenas um pouquinho burgueses.

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