São Paulo, terça-feira, 28 de outubro de 1997
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O cotidiano crime do professor de português

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A melhor coisa que já se escreveu sobre um professor talvez tenha sido essa: "O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos."
Deduz-se que todo professor tenha ou devesse ter um nó na garganta. A frase é de um conto da escritora Clarice Lispector (1925-1977) chamado "Os Desastres de Sofia". O título desta coluna é também inspirado em conto dela: "O Crime do Professor de Matemática".
Não é Dia do Professor. É apenas época de preparação para o concurso vestibular. É apenas por ter lido outro dia, em algum lugar, a relação candidato/vaga para o curso de letras da Universidade de São Paulo (USP). São os cursos de letras que formam os professores de português.
É apenas porque, em recente contato com professores de português do primeiro grau, da rede pública de São Paulo, achei que eles tinham um inconsciente nó na garganta, por um semiconsciente crime que cometiam todo dia: o de ensinarem todo dia mais ou menos o que só tiveram condição de aprender mais ou menos.
Os professores de português não sabiam português, a matéria mais importante da escola. O discurso deles era constrangedor pela falta de clareza e conteúdo. Exceto por um ou outro mais velho, que se formou em tempos de educação mais sólida, os demais eram coitados ensaiando frases num rudimentar nheengatu.
Não tinham noção da importância do professor de português numa escola -nem poderiam, seus contracheques eram a prova mais concreta disso.
Pareciam não saber que o aluno que não aprende português direito, não aprende o resto. Não lê o enunciado de um problema, não entende um conceito de geografia.
Os professores foram tapeados com bajulações pedagógicas a vida toda. Ninguém lhes disse o mínimo: que a língua é difícil. Que é preciso gosto, vontade e muito exercício para aprendê-la e ensiná-la.
Professores de português. Seria interessante saber, por exemplo, que tipo de gente é essa que se inscreve para as 808 vagas da carreira de letras oferecidas pela USP para 1998.
Só para o curso de português são 204. A relação candidato/vaga é de 5 para 1, das mais baixas da universidade. Em um dos cursos mais concorridos, publicidade e propaganda, com 45 vagas, a disputa é, em média, de 85 inscritos por vaga.
Para que servirão depois esses 808 formandos? Para onde vão? Para não falar das assassinas faculdades particulares, que todo ano jogam na rede pública (e também nas escolas mambembes da rede particular, verdadeiras ratoeiras educacionais) um batalhão de iludidos professores criminosos.
Professores de português precisam de uma reeducação completa. Eu começaria dando -em troca de substancial aumento nos contracheques dos que passassem- um tema para redação, a partir desse período de Lispector: "Tratava-se de expor-se e de expor um fato, e de não lhe permitir a forma íntima e impune de um pensamento." Quantos passariam?

E-mail mfelinto@uol.com.br

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