São Paulo, terça-feira, 28 de outubro de 1997
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Torcedor só se livra da paixão quando morre

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A paixão clubística é um fenômeno profundo e universal. Dois exemplos recentes bastam para ilustrá-la.
No caderno Mais! de anteontem, o cientista social italiano Antonio Negri publicou um artigo interessantíssimo, com o sugestivo título "Os Padecimentos de um Torcedor".
Para quem não sabe, Negri é um ex-terrorista das Brigadas Vermelhas que recentemente voltou à Itália e se entregou à Justiça. No artigo em questão, escrito numa prisão romana, ele lamenta seu destino de torcedor do Milan cercado de inimigos da Roma e da Lazio, seus companheiros de cárcere.
Dada a má fase do outrora imbatível Milan, Negri diz que sua humilhação é insuportável e que chegou a contemplar a hipótese do suicídio.
Depois de rechaçar categoricamente a possibilidade de mudar de time ("Eu perderia meu filho se o traísse, e meu pai se viraria no caixão"), o autor conclui o artigo dizendo: "Ouso pensar que o próprio futebol deveria ser eliminado porque é, em todo lugar, uma prisão; e que as prisões deveriam ser destruídas porque, em todo lugar, estão invadidas pelo futebol".
Descontando o tom caracteristicamente italiano do texto, entre o humor irreverente e a dramaticidade exagerada, podemos concordar com a idéia de que torcer para um clube é quase uma sina, da qual o torcedor só se liberta quando morre.
Daí chegamos ao segundo exemplo. Na última sexta-feira, o escritor carioca Paulo Lins, autor do romance "Cidade de Deus", estava no mesmo vôo que levaria a equipe do Flamengo a Porto Alegre para o jogo contra o Internacional. Logo que percebeu a companhia dos rubro-negros, o escritor, que é botafoguense roxo, comentou com sua companheira: "Se este avião cair, eu morro, mas morro feliz".
Ô, língua! Minutos depois, o avião sofreu um princípio de incêndio, ainda no Galeão, e os passageiros tiveram de ser transferidos para outra aeronave. Talvez já fosse um prenúncio do desastre que aguardava o Flamengo no Beira-Rio, mas isso é uma outra história.
O que interessa aqui é notar como a adesão a um time é um dos valores mais íntimos e profundos de um indivíduo. O sujeito, com bons motivos, pode mudar de partido, de emprego, de mulher. De clube, nunca. "Virar casaca" é, na escala moral do torcedor, um crime inafiançável.
Uma amiga jornalista chegou a dizer que, numa campanha eleitoral, acusar um político de ter mudado de clube deveria ser tão grave quanto acusá-lo de corrupção ou de assédio sexual.
É nesse contexto que se deve encarar o desespero de uma torcida como a do Corinthians diante do fracasso atual do time no Campeonato Brasileiro.
Os torcedores que perdem a cabeça e partem para uma inadmissível agressão aos atletas são, na verdade, corintianos imaturos e amadores.
Têm muito a aprender com os corintianos mais antigos, sofredores profissionais, que tiveram sua resistência fortalecida nos 22 anos anos sem título, entre 54 e 77. Estes suportam a má fase com estoicismo e dignidade, pois sabem que amanhã será outro dia.

Matinas Suzuki Jr., que escreve nesta coluna às terças, quintas e sábados, está em férias

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