São Paulo, terça-feira, 28 de outubro de 1997
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Americanos acham que a Europa ficou burra

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um dos perigos atuais é o neoliberalismo na cultura. Assim como a derrota do socialismo está criando um mundo sem travas à injustiça social, acabando com a solidariedade e chamando pobres de "incompetentes" ou "vagabundos", também na cultura há um grilo no ar.
Sente-se isso na arrogância com que a arte "industrial" mata seus últimos laços de amor com as aspirações estéticas sérias.
Nos filmes de Hollywood, acabou a época em que os realizadores ainda davam barretadas à arte da Europa.
Antes, importavam diretores da Alemanha e da França para vitalizar o cinema nascendo em LA. Assim, vieram nomes como Billy Wilder, Stroheim, Renoir, William Dieterle, Michael Curtiz, Fritz Lang.
Até há pouco tempo, alguns cineastas norte-americanos tinham fascínio por climas "densos", como eles imaginavam que era a "arte européia". Geralmente, esses filmes ficavam ridículos, como o "Pret-à-Porter", de Robert Altman, ou coisas estranhas como a "Insustentável Leveza do Ser", de Philip Kaufman.
Era patético ver os comedores de cachorro-quente falando do Ser ou do Nada. Mas até isso acabou. O estranho amor que Woody Allen tinha por Bergman terminou (aliás, graças a Deus) e o nosso cômico voltou a ser profundo sendo "superficial", com o ótimo "Mighty Aphrodite" ou "Bullets over Broadway".
Por outro lado, com a morte do absoluto "europeu", os ideólogos do mercado estão eufóricos. A expressão "eurocentrismo" passou a ser um xingamento. Sumiu no Ocidente a veleidade de se atingir alguma "salvação" através da arte.
Nos guetos, a velha vanguarda luta desde 1916, desde o Cabaret Voltaire, desde o dadá, mas parece que ninguém mais presta atenção nesses "excluídos". O mercado perdeu a culpa e os "rambos" da vida brilham à solta, só nos restando piruetas mentais para descobrir "grandeza" em John Woo ou Paul Verhoven.
Sempre houve uma bronca americana contra a "profundidade" da cultura do Velho Mundo. Isso foi tema de vários musicais e chegou, paradoxalmente, a criar obras-primas, como "Cantando na Chuva" ou "Na Roda da Fortuna" ("Band Wagon").
Os norte-americanos não sabiam que sua genialidade vivia exatamente no "superficial". Busby Berkeley é tão importante quando os "ballets russes", mas, até hoje, ninguém sabe disso nos EUA.
Quentin Tarantino, que tinha despontado como um caminho paródico da violência norte-americana com "Pulp Fiction", virou uma salsicha comercial, patrocinando porcarias kitsch (com a benção do "trash") em sociedade com o picareta Robert Rodriguez, o mexicano que ia "salvar" o cinema independente com "El Mariachi". Arrghh...
A culpa das vítimas
Os mercadores norte-americanos, quando tentam uma reflexão, chamam os europeus de "decadentes e intelectualizados". Querem é dar o golpe de misericórdia na Europa, combalida pelo pesadelo pós-ideológico.
"A Europa perdeu a criatividade", dizem. O fracasso dos europeus seria devido a seu "esnobismo", recusando-se a qualquer coisa que faça sucesso comercial.
Dizem: "Como são incapazes de se modernizar (leia-se: 'americanizar'), os europeus se 'refugiam no passado'". "O último grande pintor francês foi o Jean Dubuffet", afirma a besta quadrada do Fernando Botero, o mais domesticado dos pintores latinos e, claro, sucesso entre os burgueses de Nova York.
O pior é que é verdade. A pintura européia, a música, o cinema, tudo está na UTI. Mas a culpa é de quem? A Europa teria ficado burra? Os liberais acham que não. Acham que o problema é que a Europa é "inteligente demais". E isto atrapalharia a criação artística.
Além disso, o norte-americano acha que talvez a causa sejam os subsídios que o governo dá, viciando os europeus na falta de competitividade, "o que provoca a falta de talento", dizem analistas como Alan Riding em jornais de arte ou o picareta (como é o nome dele?) que publicou um artigo numa revista científica imitando europeus (Lacan etc.) para "provar" que a cultura européia é enganadora.
Tudo na linha de um "neodarwinismo-para-toda-obra" que rola hoje. A culpa é dos fracos. "Onde estão os pintores?", perguntam. "E música clássica?"
"Ahh... temos o Pierre Boulez" -dizem os franceses. Mas até musicólogos europeus acham o Boulez culpado pela crise da música, impondo seu atonalismo desesperante como cânone.
O pior é que é verdade; Boulez é chatíssimo.
No cinema, a tragédia é total. Depois da morte de Truffaut e Malle, além de um deprimido Godard, que é suíço, só restam medíocres cineastas arrivistas, filhos da publicidade, gente menor como Luc Besson ou Leos Carax. O pior é que "c'est vrai". Ou seja: tudo é verdade. Só que a "causa mortis" talvez não esteja na Europa.
Acusam o pensamento europeu de "suicídio pelo elitismo intelectual". No fundo, acham que a causa da crise é que os europeus se recusam a ser "americanos". Os artistas europeus teriam de aprender a contar histórias, em vez de fazer filosofia.
Não ocorre a estes "filósofos de mercado" que a culpa da crise cultural seja da própria América. O mundo sofre com a mutação violenta do capitalismo em cassino financeiro e ainda o acusam de sentir o golpe.
A culpa é das vítimas, sempre. Se pensam assim da Europa, imaginem o que pensam de nós.

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