São Paulo, sexta-feira, 31 de outubro de 1997
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ELVIS À MESA

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O culto a Elvis Presley é como um vírus. Você vê de longe, acha graça, quase não entende, mas, quando chega mais perto, pega como um sarampão.
Vinte anos depois de sua morte, as locadoras de vídeo, livrarias, casa de discos e Internet oferecem material para refrescar nossa memória. Foi ontem e já esquecemos. Que história, que cantor, que carreira e que carisma! Uma paixão.
Observo fotos, centenas delas. Elvis menino, carinhosamente abraçado à mãe, Gladys, e ao pai, Vernon. Elvis na sala de aula, sentado na carteira do fundo. Orgulhoso, encostado no caminhão do pai. Em todas as fotos tem os olhos tristes. A boca sorri, mas os olhos são sempre tristes. Uma depressão no olhar, uma cara de "quero mais" que nenhuma torta de pecan ou de banana curaria.
Assisti aos filmes que consegui encontrar nas locadoras. Lembrei vagamente das preguiçosas sessões das duas e de Flipper, o golfinho. Hollywood conseguiu "flipperizar" o cantor, repetindo "ad nauseam" os mesmos mergulhos em fundo de céu azul, mar e palmeiras.
As músicas eram quase sempre horríveis, mas, se era possível, Elvis as tornava palatáveis.
Só os filmes dão assunto para um livro inteiro, mas queria ter visto Elvis em shows, pois Hollywood censurava o cantor da cintura para baixo e ele aparecia um pouco duro. Imaginem, Elvis, the Pelvis, desengonçado.
No meio do material sobre Presley, o achado mais precioso é o livro "The Life and Cuisine of Elvis Presley", de David Adler.
Geralmente detesto esses livros de quem comeu o quê, totalmente dispensáveis, mas este é surpreendentemente agradável de ler. Através dos hábitos alimentares de Elvis, conseguimos ver uma ponta da realidade da vida do homem, desde sua infância até a morte em Graceland, sua casa de Memphis.
A comida de Elvis é igualzinha a ele. Inocente e mítica, simples e caipira, às vezes, complicada como o demônio. O lambiscar sem culpa, hoje chamado de "grazing", foi a regra dos primeiros anos de fama.
O autor do livro fez uma pesquisa, começando em Tupelo, onde Elvis nasceu, e terminando nas casas de fãs que ainda o consideram vivo e fazem para ele bolos de aniversário. Em resumo, foi esta a trajetória de comilança de Presley.
Tupelo
Os pobres em Tupelo, em meados dos anos 30, comiam basicamente a mesma coisa. Bolinho de fubá frito, legumes, quiabo empanado e, se aparecesse algum dinheiro, um pedaço de carne.
A família de Elvis tinha a sorte de receber uma cesta de legumes e verduras de uma tia que plantava uma horta. Nunca sentiram falta de mostarda, ervilha, feijão, berinjela, tomate, couve.
Gladys não era lá estas coisas na cozinha. Seu maior desejo era ter sido atriz, mas o amor pelo filho foi tanto que aprendeu a fazer uma comidinha gostosa como mais um modo de expressar amor.
Comida de mãe para Elvis, então, não era mais que couve passada na gordura de porco, broinha de fubá, sanduíche com manteiga de amendoim, batatas e tomates fritos, que às vezes acompanhavam um esquilo caçado pelo pai e feito como se fosse galinha frita. Para beber, chá gelado muito doce.
Primeira Assembléia de Deus
O filho e a mãe não perdiam um domingo de igreja. A Primeira Assembléia de Deus é uma seita fundamentalista que acredita na realidade do sobrenatural. De acordo com a seita, Deus e o Demônio estão conosco, fisicamente reais. As cerimônias são agitadas. Fiéis e ministro se mexem, pulam, requebram por entre as fileiras de cadeiras, braços e pernas sacudidos. Elvis aprendeu lá, segundo ele, todos os hinos que existem.
Depois de tanta dança, era feito um piquenique, debaixo de uma árvore com sombra. As mulheres traziam a melhor comida que podiam. Frango frito, broinhas, saladas e sobremesas de virar a cabeça de Elvis, que adorava doces.
Cultura teen
A cultura teen só aparece nos anos 50 e nos Estados Unidos, na América afluente do pós-guerra, com seus ícones e tradições de consumo. As estradas ficam cheias de drive-ins de hambúrgueres com desenhos de naves espaciais. Os carros parecem aviões. Tudo é "fake", até a comida.
Os livros de receita da época são difíceis de serem seguidos porque quanto mais coisa em pacote e em lata mais sofisticada era a refeição. O bolo em formato de coração desmontava sob a camada grossa de açúcar cor-de-rosa, as saladas eram verdes e azuis, até a Lua era azul, o chique era "mock turtle soup", "mock-isto-e-aquilo" (no caso, "mock" significa imitação).
Elvis participara pouco da folia de consumo porque era pobre. Como motorista de caminhão, começou a cantar na estrada em troca de comida. Em pouquíssimo tempo, transformou-se no teen mais famoso do mundo, o "rei do rock and roll".
Comprou um Cadillac cor-de-rosa. Aprendeu a gostar de algodão doce, cachorro quente, pipoca caramelada, jujuba, pé-de-moleque, Karo e Pepsi.
O sonho dos teen era não ter hora para comer. Elvis desistiu de refeições regulares. Era o prêmio, a vantagem de ser célebre.
Comida de exército
O exército convocava gente famosa quando queria abaixar sua crista. Os dois anos de serviço de Elvis foram um tormento, mas a comida não era tão ruim quanto ele esperava. E por quê?
O refeitório do quartel tinha um sotaque decididamente suíno. Carne de porco frita, couve, ovos fritos, linguiça. Comida farta, honesta, barata.
As refeições refletiam o lugar onde estavam situadas as bases militares e a maioria era no sul, de clima quente, o que permitia mais dias de treinamento. Elvis adorou.
Graceland
A cozinheira mais requisitada em Graceland era a da noite, pois o cantor tinha hábitos noturnos. David Adler, autor da pesquisa, foi até a casa dela e comeu uma refeição à la Elvis.
Pauline, a cozinheira, era uma negra de cabelo branco. A mãe de Elvis, uma branca de cabelo preto. Pois o cantor as achava muito parecidas. Na verdade só tinham em comum o desejo de amamentá-lo.
O menu foi "ugly steak" (bife feio), um filé de carne, passado na farinha de trigo e frito como frango. Toda a carne de Elvis vinha para a mesa cortada em pedacinhos, como a comida de uma criança pequena. Ervilhas de lata na manteiga com um pouco de cebola picada e vagens. E ketchup.
Em Graceland, Elvis comia tudo o que gostava. Rosbife, peru, muito bolo e muito doce.
"Vamos, meu amor, estou morto de fome. Preciso de uma coisa gostosa para comer", dizia. Elas, imediatamente faziam o que ele pedisse.
Las Vegas
No final da vida, Elvis entrou num mundo só dele. Era o show, o quarto de hotel, nenhum amigo, a TV e comida. A comida era conforto e companhia. Nos anos 70, começou a comer compulsivamente. Uma vez, em Baltimore, na manhã seguinte a um show, Elvis se levantou e pediu um sundae com calda quente. Comeu depressa, pediu o segundo, o terceiro, o quarto e o quinto, e... desmaiou.
Por estas e outras, era frequentemente internado no hospital de Memphis para uma desintoxicação forçada.
Lá, ficou amigo de uma enfermeira que, mais tarde, escreveu um livro sobre ele, defendendo a idéia polêmica que Elvis não tinha o perfil de um "junkie".
A enfermeira compreensiva fazia uma torta de banana que Elvis adorava e comia inteira. A torta era comida de mãe em qualquer lugar do mundo.
A pergunta
Elvis está vivo? Gosto da resposta de Madonna, pensando em Lisa Marie Presley. "Elvis está vivo e é muito bonita."
Claro que está vivo. Como sua música e como sua comida, que desponta como moda nos anos 90. E como as mulheres de 55 anos que, ao escutarem suas músicas, se sentem vivas, de vestido de tafetá tomara-que-caia, saia rodada, cinto grosso de elástico, sapato chispa de fogo, óculos gatinho. "Love me tender... love me true..."

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