São Paulo, sexta-feira, 31 de outubro de 1997
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"Negritude" norteia a tragédia

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

"Otelo", para a platéia presente, traz a sombra da obra-prima que Orson Welles criou para a tragédia de Shakespeare.
O cineasta, no filme de 1952 que dirigiu, acentuou o que Shakespeare, por sua vez, já havia buscado sublinhar em sua peça escrita em 1603 ou 1604: o confronto racial. A cor.
No original de 1565 do novelista italiano Giovanni Giraldi, ou Cinthio, a cor é de mínima importância. Shakespeare, na peça, refere-se repetidamente a ela, sobretudo no primeiro ato.
E Orson Welles, no filme, contrasta o preto e o branco, a barbárie negra do general Otelo (que ele próprio interpretou) e a placidez branca da jovem Desdêmona, nas próprias imagens, no preto-e-branco da tela.
O filme foi relançado no início desta década, casando inesperadamente com o crescimento da consciência (e dos conflitos violentos) de identidade negra nos Estados Unidos e no mundo.
Engraçado que, assim como acontece com a autoria das peças, que alguns não aceitam ser de Shakespeare (propondo autores "nobres" em seu lugar, até mesmo a rainha Elizabeth 1ª), também a "negritude" de Otelo foi seguidamente questionada.
As indicações no texto são evidentes, como quando Iago convence Otelo de que Desdêmona o rejeita precisamente por ser negro. Mas Shakespeare deu uma nobreza (em armas, em caráter) a seu Otelo que confundiu antigas platéias racistas.
E confundiu até grandes escritores, como foi o caso do poeta romântico Samuel Taylor Coleridge, que não conseguia aceitar que um personagem de tamanha nobreza como o Otelo shakespeariano fosse "negro autêntico".
Mas o que Otelo tem de nobre também tem de fraco, o que torna a tragédia, possivelmente, também ofensiva à platéia hoje mais aferrada à correção política.
Otelo mata Desdêmona por ciúme. E tem ciúme, deixa-se levar pela intriga de Iago, porque é fraco. É incapaz de acreditar na fidelidade de Desdêmona porque é incapaz de acreditar em si mesmo. Na equação perversa, o conflito resulta, precisamente, de ser negro, de ser um "outsider".
Para o bem ou para o mal, não é fácil aceitar William Shakespeare, nesta como em outras tragédias monumentais.

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