São Paulo, sexta-feira, 31 de outubro de 1997
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Júri anuncia um futuro para o cinema

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Há o mercado e os filmes. E há então um outro objeto: o cinema. A convite da Folha, o júri da 21ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo se reuniu para falar do futuro das imagens em movimento e terminou por traçar a marcante diferença que há entre comércio e arte.
O fotógrafo brasileiro Affonso Beato, o diretor norte-americano Hal Hartley, a atriz espanhola Rosana Pastor e o cineasta romeno Robert Dornhelm (o publicitário carioca Alexandre Gama não pôde comparecer) conversaram durante uma hora e meia sobre a crise que sofre o chamado cinema de arte e a obrigatória briga por espaço, sempre ocupado pela produção de massa hollywoodiana.
Falaram sobre as esperanças e receios com as novas tecnologias, lamentando a perda da "liturgia" da sala escura. Algo que, afirmam, é uma experiência existencialmente necessária. Leia abaixo trechos do encontro.
*
Folha - Ainda existe espaço para o cinema como obra de arte ou, como afirmam muitos, à maneira de Jean-Luc Godard, sobreviverá apenas um mercado de filmes?
Hal Hartley - Eu não acredito que Godard pensa em morte, no sentido de total desaparecimento, de um cinema que é arte e não comércio. Talvez pense na audiência reduzida para esse tipo de filme. Mas o fato é que esse público ainda existe, e isso é o que me faz continuar realizando filmes.
Robert Dornhelm - Eu sou mais radical quanto ao problema. Acho que agora nós estamos vivendo uma grande crise. Os homens de negócio, os vendedores e advogados estão controlando 90% de tudo. Os comerciantes vendem e controlam o filme. Quase não há espaço para uma ação independente.
Hoje há vários tipos de negociação que um investidor está compelido a fazer. Com as TVs pagas, distribuidores de vídeo... Sempre visando o mercado norte-americano. Tudo se resume a uma indústria, o lado feio do cinema. A minha experiência me mostrou isso.
Hartley - Acho que é sobre essa situação que Godard e outros falavam. Há uma coisa muito óbvia -e que todos sabem, mas parecem esquecer- sobre o cinema: ele é uma grande indústria de entretenimento e também um grande meio para reflexão e exposição de idéias. Mas hoje parece haver mais "vendedores de sapato" do que interessados na outra parte possível.
Dornhelm - Mas há também um dado positivo. A cada momento o público parece mostrar para os homens de negócio que eles não estão certos o tempo todo. Um filme como "Full Monty", feito com US$ 2 milhões, é capaz de render muito mais do que seu custo. Isso parece indicar que temos também uma chance.
Affonso Beato - Parece me que, se você tem um filme ou uma peça, um produto, enfim, quanto mais informação tiver menos comunicação você terá com o público. Quanto maior o seu desejo de comunicação, menor deve ser a quantidade de informação que você deve apresentar. É necessário então diferenciar claramente os dois tipos de cinema de que estamos falando.
O que chamamos de cinema de entretenimento é, mais do que outro tipo de cinema, onde está uma maior quantidade de informação. Eu não acredito que todos os filmes sejam "comunicação de massa". O que eles dizem (Godard e outros) é que há um tipo de filme, não importa o quanto exista de investimento ou força econômica envolvidos nele, capaz de realmente atingir as pessoas. Penso que na Mostra de Cinema de São Paulo assistimos a uma diversidade de diretores, grupos e países que demonstram que esse tipo de cinema continua a ser feito.
Rosana Pastor - Obviamente o cinema que consideramos arte não caminha para o desaparecimento. Sempre haverá alguém com uma boa idéia e grande potência criativa, fazendo um trabalho com pouco dinheiro; uma turma entusiástica e atores interessados em trabalhar em um projeto pessoal por quase nada. Felizmente ainda encontro pessoas assim.
Dornhelm -Mas você ainda é dependente de uma distribuidora, do acaso de uma distribuidora apostar em seu filme. O mercado é muito pequeno e há limites para o número de filmes que podem ser lançados a cada ano.
Beato -O cenário não mudou muito nos últimos anos para o filme que não se pretende "de entretenimento". Na verdade, hoje há mais chances de um filme com essas características ser visto do que antes.
Hartley - Nos Estados Unidos os grandes estúdios procuram fazer com que seus filmes se pareçam cada vez mais com filmes independentes -esteticamente falando. Um gesto muito superficial. A palavra independente já é um pouco ridícula. O correto seria alternativo, por ser uma opção ao "mainstream".
Bem, os estúdios fazem isso porque alguns alternativos conseguiram fazer um bom dinheiro e isso lhes parece um grande negócio. Eles fazem filmes que pareçam alternativos, mas não concordam em trabalhar como os alternativos trabalham.
Dornhelm - Acho que a situação na Europa é pior do que nos EUA. Nós não temos mais mercado. Na Áustria, um filme (como o meu) pode ter tido boas críticas, ter sido convidado para muitos festivais e não conseguir ser exibido. A situação é muito patética. Mas todos os filmes norte-americanos conseguem exibição. Quatro filmes podem estar sendo exibidos em 80% dos cinemas do país.
Hartley - É um monopólio!
Dornhelm - É pior do que você imagina. Na Áustria cada McDonald's traz indicação dos filmes da semana. Os filmes que as pessoas devem ver naquele dia. O fato é que você está dependente desse tipo de artifício para conseguir publicidade para seu trabalho.
Hartley - A única alternativa é fazer filmes menores, mais baratos e alternativos. Quando eu comecei filmar não havia outra saída. Eu só poderia trabalhar assim.
Beato - O seu primeiro filme foi um sucesso nos EUA? Você teve uma distribuição nacional?
Hartley - Sim, eu tive uma distribuição nacional. Mas isso porque antes de mim houve o sucesso de Spike Lee, que realmente era alternativo. Um diretor negro falando sobre a comunidade negra. Seu sucesso entusiasmou todos. Eu me beneficiei dessa situação, o momento em que os pequenos produtores começaram a se organizar.
Mas se há uma crise, acho que devemos questionar não apenas quem faz filmes, mas também o público. Descobrir por que querem ver os filmes oferecidos pelo McDonald's, Coca-Cola, Blockbuster e HBO. O público poderia quebrar essa cadeia e mostrar que deseja outro tipo de filme. Mas isso não acontece.
Dornhelm - Não acredito que a solução seja afastar-se e produzir filmes cada vez menores. Acho que é um problema que toca na distribuição.
Hartley - Nos EUA você tem que ter a Blockbuster ao seu lado. A Blockbuster realiza uma espécie de censura. Eles não colocam nas lojas filmes que usem determinada linguagem ou que abordem determinados temas. Isso é ridículo, mas ninguém foi capaz de dar um basta. É necessário combater toda forma de censura.
Dornhelm - Mas há também um outro tipo de censura. Aquela que diz: "Ou você faz dinheiro ou não terá seu filme lançado".
Hartley - É uma tragédia. Você é obrigado a ser um sucesso.
Pastor - Na Europa vivemos uma colonização pelos grandes estúdios norte-americanos. Mas há também um problema adicional. Somos pessoas de diferentes línguas. Falamos francês, russo, espanhol, alemão.
A saída, para alguns, é a co-produção entre vários países. Mas com uma regra: os filmes têm que ser falados em inglês.
Sou espanhola e é estúpido estar falando da minha cultura e do meu país em inglês! Acho que cada país da Europa deve defender sua cultura. O que pode significar grandes dificuldades de distribuição tanto no continente quanto nos outros países do mundo. Eu não sei o que é necessário mudar. Não tenho a resposta.
Hartley - Alguém me falou ontem sobre o DVD, uma nova tecnologia. Vocês sabem o que é? É como um CD, mas para gravar filmes. Ele consegue guardar muita informação. Você pode ter em um DVD a versão original e a legendada. Essa tecnologia pode mudar tudo.
Beato - Todas as mídias vão mudar em um tempo muito curto. A transmissão por satélite se tornará digital, o DVD é digital e haverá aparelhos de TV com tecnologia digital...
Dornhelm - Mas não muitos filmes.
Beato - Não, mas penso que será possível ver um filme em sua casa com uma qualidade cada vez maior.
Hartley - Nos últimos cinco anos aconteceram mudanças incríveis. Novas câmeras, novo maquinário para montagem, os vídeos. Mas há algo que não muda: a tela. A exibição de um filme na tela escura. Isso eles não puderam mudar, e talvez demorem 50 anos até que consigam.
Beato - Há uma experiência acontecendo agora no México com satélites. A idéia é transmitir um filme para pequenas salas por esse meio. Claro que há perda de qualidade da imagem.
Folha - Uma nova tecnologia significa um novo cinema?
Hartley - Não acredito que o essencial mude. As histórias continuarão a ser contadas em imagens.
Dornhelm - Talvez o que mude seja a experiência comunitária do cinema. Uma reunião de pessoas. Estar na sala de sua casa sozinho não é cinema.
Aqui em São Paulo as salas são nuas. Aqui não há mais as cortinas protegendo a tela. Não é mais possível aquela experiência das luzes ficando fracas e a cortina se abrindo. Essa liturgia não existe no lar de cada um.
Hartley - Reconheço essa perda. E o fato de que a experiência do cinema é uma experiência teatral.
Beato - O que queria dizer sobre o DVD é que talvez esse novo meio tenha como consequência um outro tipo de produto, tão revolucionário quanto foi o vídeo para a distribuição de filmes. O DVD será muito mais radical. Será como carregar um livro, mas de imagens.
Pastor - Quanto mais penso nisso, na liturgia do cinema, na experiência de dividir algo com alguém, creio que esse meio foi um substituto para a experiência do teatro. Talvez essas novas tecnologias acabem com isso.
Beato - Em poucos anos não haverá mais tela. Apenas um capacete para imagens virtuais. E ninguém vai conseguir reter o processo.
Pastor - Eu quero descobrir como não acabar com essa experiência comunitária.
Hartley - Eu posso responder? Temos que continuar a ir às salas de cinema. Não importa a tecnologia. Nada é melhor do que a tela e a sala escura.
Dornhelm - Estar na mesma sala com outras pessoas ainda é uma experiência muito importante. Já assisti filmes em salas vazias. A fruição foi outra.
Hartley - Isso acontece porque os filmes são feitos sob a idéia de teatro. Basicamente vemos o mesmo processo. A aproximação e o desenvolvimento dos personagens.
Beato - Você está absolutamente certo. A dramaturgia utilizada é ainda a do teatro. Eu sou muito interessado na idéia que alguns diretores desenvolvem. A vontade de procurar uma linguagem que destrua as fontes, como já fez Alain Resnais.
Folha - Há a necessidade então de um novo movimento de vanguarda no cinema?
Hartley - Agora mais do que há 30 anos. É necessário que haja o espaço para a liberdade. Quando pensamos na geração de Francis Coppola e Martin Scorsese... A questão agora é saber como abrir novamente a porta.
Alguém fecha a porta e um outro tenta abrir novamente. Esse atrito é necessário. Se você mantiver sempre a porta aberta, tudo ficará aborrecido.
Folha - Existe em vocês a vontade de trabalhar para os grandes estúdios em Hollywood?
Dornhelm - Não é um sonho para mim. Essa não é a minha obsessão. Se houvesse um trabalho no cinema alternativo norte-americano, isso me interessaria mais.
Hartley - Por que dizer não para um trabalho?
Beato - As pessoas imaginam que em Hollywood não podem fazer o que querem. Mas há fantásticos produtores lá. Pode ser uma grande experiência.
Pastor - As pessoas me perguntam muito sobre isso na Europa. Para mim não se trata de um sonho, um desejo. Meu maior sonho não é Hollywood, mas estar feliz no final do dia. Isso significa não me envolver com um tipo de projeto em que não acredito.
Não quero estar envolvida em um projeto que eu tenha que negar a mim mesma, esconder quem sou.
Não quero ser uma voz sem sentimentos ou criatividade. E Hollywood significa renunciar a muito do que se deseja. Estou falando de força, de criatividade e generosidade. Não estou interessada na força do ator hollywoodiano.
Eu fui convidada para fazer um teste para um importante filme em Hollywood. Eles procuravam uma atriz espanhola para interpretar uma mulher envolvida com os terroristas bascos.
Eu fui para lá (as filmagens aconteciam na América do Sul) e fiz o teste. Dias depois, eles me chamaram e disseram que queriam um outro teste. O diretor de elenco me disse: "Nós realmente gostamos de você, mas nós gostaríamos que você fizesse uma Carmen".
Eu disse: "Essa mulher deve ser uma terrorista, de um grupo basco, na Espanha, e ainda assim ser uma sedutora?".
Esse é o tipo de coisa que eu não poderia fazer. Colocar um vestido vermelho e interpretar uma terrorista basca.
Se eu tivesse feito, talvez o papel fosse meu. Mas o preço, me parece, era muito alto. A fama pode não ser tão importante assim.

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