São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Mercado arrisca sua sorte num jogo perdas fatais

CELSO PINTO
DO CONSELHO EDITORIAL

O furacão financeiro que veio da Ásia, passou pela Europa, Estados Unidos e chegou ao Brasil, teve pelo menos uma vantagem didática. Ninguém pode mais alegar que nunca ouviu falar da globalização financeira.
Até há poucos meses, é provável que poucos soubessem onde ficava a Tailândia ou Hong Kong. Hoje muita gente sabe que um resfriado nesses lugares pode virar uma gripe por aqui. Especialmente se fizer uma escala em Nova York.
Existem várias dimensões da globalização financeira. A rigor, no mundo que existia entre 1870 e 1920 o fluxo mundial de capitais privados era muito maior, em termos relativos, do que é hoje.
Medindo o tamanho da absorção pelos países dos capitais externos pelo tamanho de seu déficit externo em conta corrente, a média do período foi de 3,3% do PIB, enquanto a média nos anos 90 está em 2,6%.
Se os fluxos privados de capitais eram mais expressivos em termos relativos, eles espantam, hoje, em termos absolutos. Apenas o fluxo líquido para os países emergentes, entre 90 e 96, somou US$ 1,2 trilhão. Vários fatores fazem com que o impacto dessa massa gigantesca de capitais que percorre o mundo hoje seja tão expressivo.
Não há dúvida de que o mercado financeiro internacional tem um poder impressionante. Pela combinação de dois fatores: a desregulamentação dos anos 80 e o extraordinário avanço tecnológico nas comunicações.
Até há pouco mais de uma década, muitos países mantinham estritos controles sobre o movimento de capitais. Só nesta década, por exemplo, França e Itália eliminaram as últimas restrições ao fluxo de dinheiro, por força do acordo da União Européia.
Acabaram-se os controles sobre movimentação de capital, ao mesmo tempo em que mudou a face do mercado financeiro. A hegemonia dos bancos, como geradores de empréstimos, acabou. Decolou o mercado de títulos, emitidos por instituições financeiras e empresas.
Títulos comprados por milhões de investidores ao redor do mundo, especialmente por meio de fundos de pensão e fundos de investimento, que tiveram um crescimento vertiginoso. Eles lidam, hoje, com uma espantosa massa de US$ 20 trilhões. Cada vez que esses investidores institucionais mudam de idéia sobre onde colocar 1% de sua carteira, US$ 200 bilhões mudam de lugar. O bastante para provocar terremotos.
O avanço das comunicações e a liberdade de fluxos de capitais uniram os mercados. Hoje, muitas instituições financeiras operam 24 horas por dia. Abrem o dia na Ásia, começam a operar na Europa quando os asiáticos vão jantar e abrem os negócios no mercado americano quando os europeus estão terminando os seus.
Por essa razão, qualquer choque sobre o mercado tende a se propagar sem paradas. O que se viu nas últimas semanas foi um exemplo expressivo de um legítimo choque global. Um terremoto na Ásia abalando a Europa, a América Latina e os Estados Unidos, para voltar à Ásia no dia seguinte. Ou mudando de sinal a partir de uma recuperação americana, propagada para a Ásia, a Europa e a América Latina.
O outro componente que torna o mercado financeiro internacional assustador é o tamanho do dinheiro mobilizável. Especialmente por meio dos "derivativos".
Um derivativo, como diz o nome, é uma negociação derivada de alguma outra. Negocia-se no mercado futuro (de moedas, de juros, de índices etc.) uma operação financeira de compra ou venda que tem como referência a variação do preço de um ativo.
A intenção, via de regra, é proteger-se no mercado futuro contra a variação no valor de numa operação real. O mercado é alimentado também, contudo, por especuladores que simplesmente apostam que certos preços irão em certa direção.
Tomemos um exemplo no mercado de câmbio, mas que poderia ser aplicado a outras áreas, como juros. Suponha que uma empresa americana terá muita receita com exportações para a Alemanha, em marcos. O interesse da empresa é apresentar bons resultados em dólares, para seus acionistas americanos. Se o marco se valorizar em relação ao dólar, as receitas de exportações vão encolher quando medidas em dólares.
Para se proteger, essa empresa pode comprar no mercado futuro um contrato em marcos no valor de sua receita futura. Se, até o vencimento, o marco se valorizar, o prejuízo com a receita de exportação será compensado com o lucro da operação financeira no mercado futuro, ou vice-versa.
Agora suponha que existe uma empresa alemã na situação oposta, cujo receio é o de uma valorização do dólar em relação ao marco. Imagine que o valor do contrato é equivalente ao da empresa americana. As duas empresas poderiam fazer uma "troca", um "swap" no mercado futuro, de tal forma que uma pagaria à outra apenas a diferença referente à valorização ou desvalorização de uma moeda em relação à outra.
Uma terceira forma de qualquer das duas empresas se proteger seria adquirir uma opção de compra no futuro da moeda em que vai receber sua exportação. Se a moeda se valorizar, a empresa exerce a opção e realiza o lucro financeiro que compensa a perda com a receita da exportação. Se a moeda não se valorizar, tudo o que a empresa perde é o prêmio que pagou para comprar a opção.
Os três casos têm duas coisas em comum. Em todos eles, o desembolso e o custo é apenas uma fração do valor nominal da operação. Além disso, sempre tem alguém do outro lado apostando na direção oposta.
Este alguém pode ser outra empresa, como no exemplo de "swap" acima, mas pode ser também um especulador, alguém que simplesmente aposta que uma moeda vai numa certa direção e quer ganhar dinheiro com isso. O especulador é essencial para dar liquidez ao mercado, mas ganhou, com os derivativos, um poder gigantesco de alavancagem em suas apostas.
Quando soma-se a inquietação de empresas indo ao mercado futuro tentando se proteger contra a desvalorização de uma moeda, com o apetite dos especuladores em apostar contra essa moeda, chega-se a um ataque especulativo. Com uma fração do valor dos contratos, pode-se montar posições de bilhões contra uma certa moeda.
A dimensão adquirida pelo mercado de derivativos é espantosa. Há dez anos o mercado era irrelevante. No ano passado, os derivativos somaram US$ 35 trilhões, segundos dados do Banco para Compensações Internacionais, o BIS. Desse total, US$ 9,9 trilhões foram negociados nas várias bolsas de futuros ao redor do mundo, e US$ 24,3 trilhões, no mercado de balcão, ou seja, em operações feitas diretamente entre interessados no mercado.
Os US$ 35 trilhões, ou quase seis vezes o valor do PIB americano, são o valor de referência das operações. O risco envolvido é menor, já que elas são acertadas por margens, como foi explicado.
Alguns economistas saúdam a explosão dos derivativos como uma redução, não um aumento do risco. Como grande parte das operações vem do desejo de não correr riscos (de variação de uma moeda, das taxas de juros etc.), o salto nos derivativos apenas refletiria uma cautela saudável frente à internacionalização dos negócios.
As autoridades, inclusive o BIS, estão muito mais preocupadas. Essas operações não são contabilizadas nos balanços dos bancos, nem sempre seus riscos são entendidos por quem opera e, se alguém quebrar no meio do caminho, pode gerar uma cadeia assustadora de perdas.
Os derivativos são uma das faces da globalização financeira, mas o salto nas operações internacionais é geral.
O estoque das operações internacionais dos bancos soma hoje US$ 8,2 trilhões brutos, ou US$ 6,9 trilhões líquidos, segundo o BIS. O estoque de papéis internacionais chega a US$ 3,2 trilhões líquidos e não pára de crescer: a emissão anual pulou de US$ 294 bilhões em 91 para US$ 540 bilhões no ano passado.
Esta montanha de papéis e milhões de investidores são capazes de reagir, em questão de segundos, a boas e más notícias. Os derivativos permitem alavancar apostas bilionárias, com um pequeno desembolso de dinheiro. Ou nem isso. Pode-se tomar emprestado o dinheiro necessário para pagar a margem da operação no mercado futuro.
Foi isso que aconteceu com os países asiáticos, começando na Tailândia. No final, quem apostou contra os governos ganhou muito dinheiro, porque a desvalorização aconteceu, país após país. Especuladores como o húngaro-novaiorquino George Soros, contudo, só entram no jogo de apostar contra uma moeda quando acham que existem chances enormes de ganhar.
Quando empresas e bancos tentam se cobrir no mercado futuro, por medo de uma desvalorização, e os especuladores sentem o cheiro de sangue, vão para o bote final. O que as pessoas esquecem é que alguém tem que estar na outra ponta, vendendo dólares em troca de moeda local, para que o especulador lucre. Esse alguém, a certa altura, acaba sendo apenas o banco central local.
A globalização dos mercados financeiros torna esses movimentos rápidos, violentos e mortais. Uma inconsistência macroeconômica que, há duas décadas, poderia se arrastar por muitos anos e provocar uma lenta hemorragia, hoje pode levar um país à lona em questão de semanas. Mesmo que esse país seja o "darling" dos bancos internacionais, como era o México em 94, ou um "milagreiro asiático", como era a Tailândia.
O risco da globalização financeira existe e a multiplicação do volume de papéis financeiros em relação à produção real pode acabar, como prevê o deputado Delfim Netto, "numa enorme fogueira". O próprio Soros, aliás, é um dos críticos desta explosão financeira.
Existe, contudo, uma lógica no movimento de capitais. Um princípio continua válido: para países que mantêm políticas econômicas consistentes, a globalização financeira pode ser mais uma oportunidade do que um risco.

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