São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Na Santo Amaro de Caetano

LUIZ ANTÔNIO RYFF
ENVIADO ESPECIAL A SANTO AMARO

"Ave Maria, nessa casa não se pode ter personalidade?", reclamou Caetano, interrompendo os desenhos que fazia na sala, irritado com o irmão Roberto, que ridicularizava seus rabiscos. Tinha quatro anos.
Para reconstituir, com parentes e amigos personagens de "Verdade Tropical", passos da infância e adolescência formadoras dessa personalidade, a Folha foi a Santo Amaro da Purificação, cidade natal de Caetano, a Salvador e ao Rio.
Caetano cresceu em uma família que funcionava como um harém -descontado o caráter sexual do termo. Seu Zeca, o pai, era a única figura masculina.
Além da mãe, d. Canô, sobrinhas de seu Zeca, avós e tias ajudavam a criar a filharada. Apesar disso, lembra Rodrigo, 61, um dos irmãos, a última palavra era sempre do pai, um admirador fervoroso de Luiz Carlos Prestes que morreu há 15 anos, aos 82.
Uma dessas mulheres de Caetano é Edith do Prato, 72, que aparece em "Araçá Azul". Ela amamentou Caetano quando d. Canô caiu acamada. Outra dessas mulheres é Lindaura, 86, uma das sobrinhas -chamada pela meninada de Minha Daia. Era Lindaura quem levava Caetano para a escola. "Foi ela quem primeiro falou sobre o existencialismo com a gente", diz Rodrigo.
Para caber tanta gente, a casa tinha que ser grande. Ainda é. Tem dez quartos e cinco banheiros. Mesmo assim, Caetano dividia o quarto com os irmãos Roberto e Rodrigo. Era este que comprava os livros de Clarice Lispector que Caetano aprendeu a gostar. Ele sempre viveu cercado pela família.
Caetano nasceu em casa, às 22h50, em 7 de agosto de 1942. Na época, a família morava nos Correios. Seu Zeca trabalhava de telegrafista e era praxe o agente de Correios morar no trabalho.
Ajudada por sua mãe, Júlia, d. Canô deu à luz a uma criança mirrada, com menos de 3 kg. Caetano seria o sexto de oito irmãos (a mais velha, Nicinha, e a mais nova, Irene, foram adotadas). Em família, ganhou apelidos carinhosos, como Catito e Cae. Rodrigo conta que Caetano odiava quando, mais tarde, algumas pessoas começaram a chamá-lo de Caê.
"Eu era tímido e espalhafatoso", escreve Caetano, que se definia como "introspectivo". A família acrescenta mais características. "Era mansinho e preguiçoso", diz Rodrigo. "Era meio lerdo, desligado", diz Lindaura.
"Estava sempre no mundo da lua. Quando eu fazia um ditado, a cada duas palavras tinha que gritar para que ele escrevesse", lembra a professora Zilda Paim, 78, que ajudou a alfabetizar Caetano. "Ele não era um menino dinâmico, mas era muito inteligente."
Talvez por isso tenha sido escolhido para saudar o então candidato Juscelino Kubitschek quando ele passou por Santo Amaro, em 55, na campanha pela Presidência.
Caetano não era um menino esportivo. "Não era de brincar ou conversar muito. Se falavam com ele, Caetano dava aquela risada gostosa e voltava a voar. Para onde, eu não sei...", diz Zilda.
Odiava fazer educação física. Não só. O pai, seu Zeca, tinha uma grande paixão na vida: futebol. Torcia para o Botafogo, time de Santo Amaro. Para desgosto do patriarca, a meninada não herdou o mesmo interesse pelo esporte.
"Os meninos não gostavam. Só quem jogava futebol era Bethânia, que jogava bola na rua com os moleques", conta Lindaura. No livro, Caetano desmente a versão de que a irmã fosse ponta-esquerda num time de futebol local.
Para os familiares, a maior influência de Caetano foi a mãe. Era d. Canô quem entoava valsas antigas, fados portugueses ou músicas regionais, como as de Catulo da Paixão Cearense, para ele dormir. "Ele gostava de ficar no meu colo ouvindo rádio", conta d. Canô.
Para os santa-amarenses, ela é mais importante que os filhos ilustres. Sua fama de caridosa ajuda. "Ela é uma irmã Dulce de Santo Amaro. O corredor da casa dela fica cheio de gente pedindo dinheiro e favor", diz Edith do Prato.
Em seu 90º aniversário, em setembro deste ano, d. Canô conseguiu a proeza de reunir em torno da mesma mesa o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL) e o ex-governador Waldir Pires (PT), inimigos políticos na Bahia de Todos os Santos.
A matriarca dos Veloso virou atração. Vem gente de longe vê-la, transformando a frente da casa em estacionamento de ônibus. Os projetos importantes em Santo Amaro passam antes pelo aval de d. Canô -como o do teatro que será construído e não terá o nome Caetano Veloso. D. Canô vetou.

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