São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Saudável anarquia

SÉRGIO SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tem tanta gente publicando livro no Brasil que a verdadeira originalidade está em não ser escritor, ou mesmo artista em geral. O que não quer dizer que, passando tudo por uma peneira fina, não sobre uma razoável quantidade de autores que vale a pena ler. E o que me levou a aceitar o convite para resenhar "O Amor É uma Dor Feliz", de Fernando Bonassi, foi meu entusiasmo por seu primeiro romance, "Um Céu de Estrelas" (Siciliano), além de sua participação como co-roteirista no excelente "Os Matadores", filme de Beto Brant, tirado e ampliado de um bom conto de Marçal Aquino (de "Miss Danúbio", Scritta), e ainda a inovadora coluna "Da Rua", que Bonassi publica na Ilustrada.
O que não esperava é que fosse um livro juvenil, digamos assim, gênero que costuma me provocar arrepios -de pavor. Mas, oh, surpresa, a leitura de "O Amor É uma Dor Feliz" não foi uma tarefa, mas uma divertida viagem pelos ritos de iniciação do personagem-narrador: família, primeira transa, primeiro baseado, vestibular, escola de cinema, paixão pela professora etc. E pode até ser que, se a obra de Bonassi for adotada em escolas, desperte nos alunos o prazer da leitura, embora falte ao livro uma coisa que, pelo menos antigamente, pais e mestres adoravam: moral e civismo. O que temos é cinismo e, se algum bom conselho escapa, disfarçado, em "O Amor É uma Dor Feliz", é transar sempre de camisinha.
A começar pela família do protagonista -pai cronicamente fracassado, mãe patética, um avô bêbado "como Boris Ieltsin"- tudo é anarquia nesse livro. Um deboche que se estende aos estudos (vide a hilariante história de Trótski, no capítulo 30) e ao trabalho, principalmente na publicidade ("O macarrão da titia é produzido com ovos selecionados e farinha de trigo da fazenda! Assim é que se garante a saúde de toda a família!"). Pérola esta recitada aos trancos por uma decadente "grande atriz".
Bem, quase ia me esquecendo de que também estou trabalhando e, ora vejam, no papel de crítico. E o Bonassi que me perdoe, o livro tem um defeito: é prolixo. É provável que o autor tenha querido apenas divertir-se, divertindo-nos, mas, com um pouco (ou muito) mais de empenho, enxugamento, reescrita, enfim, poderia ter realizado um trabalho tão bom quanto "O Apanhador no Campo de Centeio", de J.D. Salinger, com um Holden Caulfield da Mooca. O próprio narrador reforça esta opinião ao prestar uma sincera homenagem a "Vidas Secas", de Graciliano Ramos: "Aquele cara sabia escrever".
Bonassi também sabe. E o melhor para ele é que, tocador de vários instrumentos (teatro, poesia, TV, ficção, roteiro, jornalismo), pode ser comparado consigo mesmo. "O Amor É uma Dor Feliz", livro um tanto comercial, é uma espécie de contraponto a "Um Céu de Estrelas". Se em ambos o autor deu à literatura brasileira algo que ela precisa, uma visão "de dentro" e sem lamentações chorosas da baixa classe média ou operária, no primeiro romance, porém -em capítulos econômicos como cenas de bom teatro ou cinema, dirigidas por um narrador cortante-, Bonassi disparou um tiro literário tão certeiro quanto o que atinge o seu operário -desempregado do ABC, estuprador, sequestrador.
Já no livro de agora, sem que impeça de luzir a todo instante o seu talento de escritor ferino, hábil em cortes, narrativa, diálogos, e sobretudo com um grande senso de humor "a la Mario Monicelli", ele se exige menos.
A diferença, poderá se argumentar, estaria nos próprios gêneros, drama e comédia. Nem tanto. Pois, se o drama pode cair facilmente no melodrama -o que não foi nunca o caso em "Um Céu de Estrelas"-, também a comédia pode resvalar para o pastelão, o que às vezes -só às vezes- acontece em "O Amor É uma Dor Feliz". Noutras vezes, há uma certa prolixidade que leva a redundâncias.
Mas não será também o caso de o autor, como seu personagem, estar precisando de um pouco de grana? Não sejamos moralistas e, para recomendar o livro, basta citar o próprio narrador, à pág. 255, a propósito de certos filmes despretensiosos americanos: "Pouca frescura artística, maior coeficiente de vida".

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