São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Francês estréia em "Autores"

JESUS DE PAULA ASSIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Ciência" é uma palavra em alta nas sociedades ocidentais (ou em todo o mundo "globalizado", o que dá na mesma). Uma lavagem de tapete, um corte de cabelo, um mapa astral ganham outro status quando se afirma que são "científicos". Dessa forma, determinar o modo como ciência é produzida, transmitida e exportada é tarefa essencial para a compreensão da sociedade contemporânea.
Nos anos 70, pesquisadores tentam uma nova tática: estudar a atividade dos cientistas do mesmo modo que antropólogos estudam comunidades isoladas e distantes. Latour é um dos pioneiros nessa vertente), junto de Steve Woolgar, Karin Knorr e Michael Mulkay, entre outros. Mas só Latour -que estréia hoje na seção "Autores", na qual escreverá mensalmente- por sua acessibilidade, clareza e escolha de bons problemas para estudo, ultrapassou o círculo restrito de especialistas e alcançou reconhecimento mais amplo. Hoje, é um autor do qual se pode discordar, com cujos escritos se pode polemizar, mas é impossível não ter posição a seu respeito. E isso já é o suficiente para atestar sua relevância.
A idéia de uma antropologia da ciência parece, de saída, um tanto imprópria. Faz-se antropologia de comunidades ditas primitivas ou simples, ou de subgrupos ditos mais ou menos homogêneos e simples dentro de uma sociedade complexa. Mas e fazer antropologia da comunidade científica, do grupo por definição (não importa aqui se isso é verdade ou não) mais evoluído, racional e complexo do planeta?
Os resultados com que Latour emergiu desses estudos antropológicos têm pouco a ver com a imagem que a própria comunidade científica tem de si e divulga externamente. Estudando os "nativos" (Latour foi antropólogo residente em um laboratório de bioquímica, na Califórnia, nos anos 70), o autor mostra que a essência da atividade científica é criar enunciados, subtrair-lhe modalidades (a partir do enunciado "X acha que a substância Y é responsável pelo efeito cuja medida é Z", criar o enunciado "Y causa Z") e traduzir interesses. Essa tradução quer dizer: a comunidade acadêmica deve sempre aumentar as alianças entre seus membros e entre estes, seus equipamentos e o "mundo objetivo"; para isso, é preciso que todos (todos mesmo) se transformem no processo. O argumento detalhado é apresentado em seu "Science in Action", infelizmente inédito no Brasil.
Se os estudos nessa vertente antropológica vão ter resultados mais convincentes no que diz respeito ao estranho sucesso humano em compreender o mundo, ainda é cedo para saber. Mas é evidente desde já que o enfoque esclarece a atividade dos cientistas e aproxima (ao mesmo tempo que mantém sua especificidade) ciência e cultura.

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