São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Trópicos utópicos

EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Caetano Veloso não brinca em serviço. "Verdade tropical" alia uma impressionante seriedade de propósito a uma quase prodigiosa capacidade de reconstruir na memória e talhar na linguagem o passado vivido. O resultado é um livro arrebatador e instigante, pleno de vitalidade, ainda que por vezes tangenciando prolixo e um tanto desigual. Um livro que só poderia ter sido feito por quem o escreveu, mas que nem por isso deixa de possuir méritos objetivos que independem do fato de ter sido escrito por quem o fez. A deliciosa e exuberante energia que emana da obra é essencialmente luz própria, não refletida. "Verdade Tropical" brilha por si.
Mais que a evolução externa dos acontecimentos, o livro busca resgatar a matriz da experiência estética, política e existencial a partir da qual o tropicalismo nasceu e floresceu. O depoimento de Caetano, líder e protagonista inconteste do movimento, impressiona pela extraordinária riqueza de detalhes e encanta pelo inegável talento da escrita. Acuidade e paixão. É difícil imaginar alguém melhor situado ou mais preparado que ele para contar a história interna da época e do movimento.
O segundo componente claramente identificável na prosa luxuriante de "Verdade Tropical" é o relato da trajetória pessoal de Caetano Veloso como criador e líder cultural nos anos críticos de sua formação artística e humana. Aí reside, penso eu, o principal interesse e a verdadeira grandeza da obra. Um banquete como poucos em qualquer língua.
Caetano se revela, sem nenhum favor, um mestre na arte do memorialismo analítico. Ele não apenas se empenha, com notável apuro e desassombro, na tarefa de observar de fora e dissecar os seus próprios processos mentais e a sua perspectiva íntima dos acontecimentos e do mundo ao seu redor, como ele demonstra uma espantosa capacidade de se transportar para a interioridade do outro, ou seja, de ocupar a posição e o ponto de vista interno daqueles (não poucos!) com os quais interage e dialoga. É por isso que, apesar de sua ótica intensa e assumidamente pessoal, a visão a um só tempo panorâmica e microscópica de "Verdade Tropical" acaba assumindo uma surpreendente objetividade.
Como o olhar retrospectivo do livro deixa claro, o dom superlativo da empatia e a forte propensão à auto-análise são traços que o Caetano memorialista elabora e desenvolve, mas que no fundo já estão presentes de forma marcante em sua vida desde os primeiros passos de sua trajetória, alimentando e impulsionando o seu trabalho criativo.
Eles transparecem, por exemplo, na aspiração faustiana do jovem Caetano de abarcar em si todos os contrários; na genuína tendência a jamais se contentar com os resultados alcançados; na corajosa disposição a forçar e saber reconhecer os próprios limites; na absoluta recusa em sujeitar o seu pensamento e a sua imaginação poética a qualquer tipo de ortodoxia ou amarra inibidora; no pendor sincero de questionar suas próprias motivações e pensar contra si mesmo ("Uma volúpia pelo antes considerado desprezível"); na arte, em suma, de devorar antropofagicamente tudo o que aparece em seu caminho, mas sem jamais perder de vista a necessidade de uma metabolização criteriosa do material ingerido e de um exame crítico da própria digestão.
"O poeta", diz Baudelaire, "goza do incomparável privilégio de ser, à sua vontade, ele mesmo e outra pessoa. Como a alma errante à procura de um corpo, ele entra na personalidade de cada um quando lhe apraz. Para ele, e só para ele, tudo está vago; e, se alguns lugares parecem vedados ao poeta, é que a seus olhos tais lugares não valem a pena de uma visita... Ele adota como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que as circunstâncias lhe deparam".
Quantas vezes não voltei a essa visão do poeta enquanto lia Caetano? Na capacidade de exercitar o dom da empatia e manejar o bisturi da auto-análise -mergulhando e emergindo renovado de suas vivências ("Botei todos os fracassos nas paradas de sucessos"), conciliando em seu trabalho a máxima entrega e a máxima crítica, reunindo e recriando em sua mente perspectivas e contribuições tão díspares quanto as de Glauber Rocha e João Gilberto, Jorge Benjor e Augusto de Campos, Jorge Mautner e Antônio Cícero- parece residir um dos principais segredos da singular magia e apelo de sua arte. "Verdade Tropical" franqueia o acesso e abre os bastidores da inteligência inquieta e da imaginação poética de Caetano à visitação pública.
O terceiro e último vetor da trama de "Verdade Tropical" consiste numa reflexão intermitente sobre a identidade e os destinos do Brasil. É a parte menos convincente da obra. Em diversos momentos ao longo do livro, e na parte final ("Vereda") em especial, Caetano nos dá a impressão de estar prestes a dizer alguma coisa mais definida e reveladora -de estar mesmo em vias de formular e desenvolver o que afinal seria a sua visão de um Brasil com que se possa sonhar-, mas a promessa não se cumpre, a revelação não vinga e o resultado termina sendo um tanto ralo e desapontador. A sensação que fica é a de alguém que promete, alguém que ensaia e ameaça mergulhar num desafio que repetidamente se oferece, mas na hora H não o faz.
Quando o assunto é a definição de um projeto brasileiro e uma visão do que pode ser o nosso futuro, Caetano consegue ser mais claro e persuasivo naquilo que nega e rejeita do que no que afirma e propõe. O Brasil, ele diz, não pode "se intimidar diante de si mesmo". Ele precisa "livrar-se de tudo o que o tem mantido fechado em si mesmo como um escravo desconfiado" e deveria evitar a falsa opção entre a "bizarria estridente" de um "grande exotismo ilegível que se opõe à razão européia", de um lado, e a "limitação modesta", fruto de um "bom comportamento dentro dos parâmetros 'ocidentais' cristalizados", de outro. Até aí, sem problemas.
Tudo isso, porém, pertence ao pólo negativo de sua visão de Brasil, isto é, àquilo que não deveríamos ser ou sonhar. O problema é: em nome do quê? O que afinal desejamos e deveríamos almejar como nação? Que sonho de grandeza compartilhado e que visão de trópicos utópicos poderiam nos unir em torno de um projeto comum de realização coletiva e de afirmação brasileira no concerto das nações?
"Verdade Tropical" tem o mérito de provocar, instigar e despertar essa busca, mas pouco avança na explicitação e elaboração construtiva do que poderia configurar o projeto visionário do "Brasil profundo" -o sonho veraz e vitorioso que nos revele ao mundo e a nós mesmos e que mereça ser sonhado. Tudo o que encontramos no livro, com raras exceções, são flashes duvidosos e rompantes rapsódicos que nos convidam, por exemplo, a colocar o "gozo narcísico acima da depressão de submeter-se o mais sensatamente possível à ordem internacional", a embarcar num "transliberalismo delirante e com batuque" ou apostar numa suposta e inexplicada "ambição brasileira de levar o ateísmo, filho do Ocidente, às suas últimas consequências". Ateísmo?
O jovem Caetano teve a sabedoria de negar-se, como ele diz, a folclorizar o seu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas. Passagens e arroubos ejaculatórios como os citados acima passam perigosamente perto da tentação de fazer do obscuro o biombo do vazio e, dessa forma, folclorizar uma vontade sincera de potência para compensar a falta de uma imagem mais clara e definida de nossas potencialidades.
Caetano sabe (e isso é parte de sua grandeza) que o seu irrefreável otimismo sobre o futuro do Brasil é mais um sentimento -um raio intenso e infuso de esperança nascido de um desejo- do que qualquer outra coisa: "É que penso e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil, por ter entrado num diálogo com suas motivações profundas -e simplesmente não concluo que somos um mero fracasso fatal". O grande desafio é desencarnar essa intuição poderosa -é concebê-la e apurá-la pelo trabalho paciente do espírito e transformá-la em visão compartilhada e projeto de nação. "Verdade Tropical" revela a trajetória de busca pessoal, renovação e conquistas de um grande e generoso criador brasileiro. O Brasil pode, precisa e merece viver à altura de sua melhor música popular.

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