São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Restos da festa

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Naqueles anos, de 85 a 89 -quando ainda não deixara a França e viajava regularmente entre Paris e o Brasil-, comprei pela primeira vez um walkman. Só usava na viagem, de ida e de volta, porque não queria falar com ninguém: partia, fervendo de saudade por um amor que ainda dura, e voltava a cada vez para o Brasil, feliz demais para bater papo. Caetano e alguns outros viajavam comigo e cantavam umas 11 horas, sem parar.
Eles, sem dúvida -mágica do tropicalismo-, representavam para mim o Brasil: a mulher que eu amava e queria, o cheiro de álcool na saída do aeroporto, a umidade poluída do ar de São Paulo e, enfim -em metáforas tão surpreendentes quanto a famosa máquina de costura sobre uma mesa cirúrgica-, as hortênsias de Gramado em uma tarde barulhenta na Praça da Sé, ou ainda a usina de Itaipu em uma manhã fria e ensolarada no cerrado.
Não tinha pena do padre Sardinha -de qualquer forma, com um nome assim, não era para ele se aventurar em terra antropófaga. Ao contrário, vindo ao Brasil, era isso mesmo que eu esperava: ser canibalizado. Ou seja, que se comesse o melhor de mim. Havia uma esperança a mais: que no processo de digestão eu mesmo me transformasse. E deu certo, ao ponto de que, hoje, eu escreveria outro livro de impressões brasileiras. Um livro menos organizado ao redor da exigência européia de um pai ordeiro que nos sustente.
Resta que, quando escrevi "Hello Brasil!", em 1991, dei um esporro no antropofagismo vulgar e (indiretamente, portanto) no próprio tropicalismo. Por quê?
Percebia, sobretudo nos meios psicanalíticos, que a parte do corpo que os canibais queriam comer eram sobretudo os chapéus. Segundo a carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro contato entre os indígenas e Nicolau Coelho foi a troca de um chapéu por um cocar. O cocar -destituído de todo valor simbólico- se tornou brincadeira exótica para o português. E o chapéu? O índio assim premiado (e ilusoriamente convencido de ser oficial da marinha portuguesa), quem sabe servisse de lugar-tenente entre seus pares, mas certamente era objeto de irrisão da parte de seus novos donos. Pelado e de chapéu, desvirtuado, ele podia seguir dançando, cedendo suas penas (e outros bens) como suvenires: ele leria o sorriso de Coelho como marca de simpatia e aprovação. Mas de fato seria feito de palhaço. É isso que acontece cada vez que nos apropriamos de uma imagem de nós mesmos proposta pelos gostos exóticos dos outros. Em um livro recente, aliás ("Fantasia de Brasil", Ed. Escuta), Otavio Souza mostra como o olhar exótico talvez seja uma forma cordial de racismo.
Italiano, nascido logo após a guerra, tenho uma certa experiência dos efeitos e do significado de um exotismo nacional. Nos anos 50 e 60, ser italiano não era fácil. Por um lado, a unidade do país não era coisa feita (pelo jeito ainda não é, aliás). Por outro lado, havia a vergonha do fascismo e da guerra.
A Itália da minha infância era também pobre -Plano Marshall à parte. Fora os monumentos perenes de Roma, da Renascença, do glorioso barroco etc., que todos vinham visitar, o que era ser italiano? Vivi, com muitos outros, o sonho internacional e socialista como via de saída, de abertura ao mundo. Que, aliás, o internacionalismo proletário acabasse se realizando como globalização capitalista, eis o que já estava previsto: pois, se nossa cabeça estava com Gramsci e Togliatti, o coração batia do outro lado do Atlântico. O mundo para o qual se tratava de se abrir eram Faulkner, Hemingway, Steinbeck, o jazz etc. -todos proibidos durante o fascismo.
Nesta época, qualquer forma de nacionalismo era evidentemente suspeita, pelo passado recente. No entanto, algo surgiu, uma espécie de consciência ou de espelho nacional que é a comédia italiana dos anos 60. Spaghetti, mandolino, pizza, malandragem, dentes cariados, "latin lover" engomado, miséria com sol, e vai cantando.
Nunca achei engraçado. Dava-me um ódio que quase me impediu de apreciar o próprio Fellini. Eu não era, não queria ser uma personagem de Lina Wertmüller. O "italianismo" -chamemos ele assim- daquela época me parecia uma maneira de tapar o sol com uma caricatura. Não podendo ou sabendo resolver o atraso, a solução era achar graça.
Por isso, vindo ao Brasil, queria amá-lo por suas histórias e sua história, não pelo cartão-postal. Este me parecia perigosamente próximo do folder de uma agência de viagem para aposentados alemães. Eles gostam do Brasil. Gostam tanto que preferem que continue igual, com as meninas baratas na praia do Recife.
Qualquer país de origem colonial é inevitavelmente herdeiro do sonho de seus colonizadores. No caso da América Latina -e especificamente do Brasil- era o sonho de reencontrar o Paraíso terrestre. Não estranha que a idéia de uma utopia tropical faça desde então parte da sensibilidade brasileira. Também isso não exclui que -justamente por um gesto antropofágico- a miragem do colonizador seja apropriada e se transforme em uma visão, um projeto e um estilo "nacionais".
Caetano narra um momento privilegiado e festivo, quando isso aconteceu.
Mas, para um viajante dos anos 80 como eu, sobravam os restos do tropicalismo: identificações triviais aos estereótipos da brasileiridade, como ele mesmo diz: "turbantes de bananas". Talvez tenha acontecido no Brasil algo análogo ao que aconteceu na Itália entre o neo-realismo de De Sica e as palhaçadas de Wertmüller: a imagem se tornou caricatura e a caricatura se tornou discurso dominante e complacente.
Nos anos 80, então, cada resto tropical me parecia corresponder a uma negação ufanista das contradições mais dolorosas. Por exemplo: somos "cordiais", portanto não é preciso ter carteira assinada e direitos trabalhistas, está tudo no coração, na "palavra" e no carinho. Somos uma "democracia racial" por milagre miscigenatório, portanto não precisamos de leis que possam proteger contra a discriminação. Somos malandros, portanto f...-se a coisa pública. Eles são felizes com uma nega, um fusca e um violão, portanto para que lhes aumentaria o salário? Afinal (Da Matta "dixit") gostamos de praia, samba e futebol, portanto somos brasileiros: com esta garantia, no que precisaríamos de qualquer outro espírito comunitário ou solidário? Etc.
Hoje moro nos Estados Unidos. A comunidade brasileira daqui é das mais severas com o que chamei de os restos do tropicalismo. Parece até, às vezes, que tenham emigrado para fugir deles. No entanto, a saudade se mata e se alimenta escutando a música que o tropicalismo inventou. Sem contradição.

E-mail ccalligari@aol.com

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