São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Hoje é domingo, dia de 'descolado' descer a ladeira

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

Depois da sarjeta, a família. Hoje deve ser um dia repleto de boas intenções na TV. Faustão passou a semana desculpando-se pelo sushi (parece que o cardápio lhe foi mesmo impingido guela abaixo pela direção da emissora). Gugu aproveitou o êxito sobre o rival para faturar com a imagem de bom-moço. Adversários cordiais, como Sérgio Motta e ACM, cavaram um dia da semana para trocar gentilezas e posar juntinhos para fotos num restaurante chique dos Jardins. Nenhuma novidade. É o Brasil.
A matinê dominical certamente trará novas baixarias, até porque elas não estão onde costumam identificá-las. O problema do "sushi erótico" não é o nu feminino, mas o fato de que mulheres funcionem de bandeja para o repasto de canastrões globais.
Gugu faz a mesma coisa há anos: usa os seios de modelos como alvo de pistolas d'água. Não se trata de saber se isso é ou não inadequado para crianças; isso é aviltante para gente de qualquer idade -homens, mulheres, o que for. Mas parece que as pessoas se divertem quando vêem pela TV esse machismo de botequim, que aliás lembra também o ambiente cafajeste das saunas masculinas dos clubes frequentados pela classe média.
O editor da Ilustrada, Sérgio Dávila, tem razão ao sugerir (em artigo na segunda-feira) que os programas de Gugu e Faustão são versões degradadas e negocistas do velho Abelardo Barbosa, onde tudo começou. Talvez Gugu e Faustão signifiquem a vitória de Silvio Santos sobre Chacrinha, cujo bordão "vocês querem bacalhau?" trazia implícito na sua formulação a zombaria e a humilhação que hoje, ao atingirem um ponto extremo, por exemplo nos aviões de dinheiro que Silvio Santos atira sobre as "colegas de auditório", passam por gestos de caridade.
Mas há um aspecto desses programas que ainda não foi devidamente focalizado: seu sucesso depende diretamente da presença, a cada domingo mais ostensiva, de "modernos" e "descolados". Agora são eles que fazem o trabalho braçal: são jurados, dão entrevistas sobre suas vidas, atuam como palhaços (às vezes involuntários), participam de gincanas, distribuem brindes, fazem o diabo. Tomaram um espaço antigamente reservado a uma espécie de lúmpen da TV. Pau para toda obra, emprestam o seu prestígio de mídia para dar um verniz de dignidade à porcalhada dominical.
O segredo dessa história talvez esteja contido no termo descolado. Figura de proa do colunismo social, o "descolado" está sempre na crista da onda. Desenvolto, esperto e bem encaixado por definição, é em torno dele que o mundo gira e a vida acontece.
Uma análise mais detida, porém, mostra que o "descolado" é herdeiro de uma forma social que tem pouca coisa a ver com modernidade. Sendo aquele que descola, que vive de bicos, o descolado é, afinal, um parasita que depende de favores. Ora, o Brasil conhece há muito essa figura.
Chamava-se antigamente agregado: não sendo escravo nem senhor, seu prestígio e sua chance de ascensão social dependiam da sua capacidade de adulação daqueles que o acolhiam por capricho ou conveniência.
Quanto mais subalterno era, mais poderoso ficava. Sendo ele próprio um exemplo da pior sujeição, embora esbanjasse uma falsa independência, o agregado colaborava para legitimar a sujeição mais cruel e evidente daqueles que, ao contrário dele, não tinham a mesma sorte.
Que o leitor volte agora ao "descolado" e veja como a história brasileira não sai do lugar. Essa gente subalterna, que frequenta as festas do jet set e enfeita a vida de uma elite historicamente truculenta, é a mesma que se promove à custa da patuléia que diverte nos programas de auditório. Como diz o outro: super-hiper-modernos!!!

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