São Paulo, segunda-feira, 3 de novembro de 1997
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O homem na casa de vidro

RON ROSENBAUM
DA "ESQUIRE"

Não há nome na caixa de correio que fica ao lado do portão da entrada de automóveis. A casa à qual a entrada pertence fica escondida atrás de árvores, várias das quais ostentam placas espalhafatosas, em tom rosa-neon, dizendo "ENTRADA PROIBIDA".
São placas que, além de especificar que "É PROIBIDO CAÇAR, PESCAR OU CAPTURAR ANIMAIS COM ARMADILHAS", em grandes letras maiúsculas pretas, enfatizam ainda mais a abrangência metafísica da proibição, acrescentando: "PROIBIDA A ENTRADA DE QUALQUER TIPO".
O simples fato de estar aqui, diante do portão da entrada para automóveis, ao lado da divisa da propriedade, já me faz sentir que estou invadindo-a, de alguma maneira.
Essa não é uma propriedade particular qualquer. É a propriedade do homem mais privado da América, talvez do último homem da América a manter sua vida privada.
O silêncio que cerca o lugar não é um silêncio qualquer. É a obra de uma vida inteira. É produto de renúncia, determinação e litígios caros na Justiça. É um silêncio de auto-exílio, astúcia e contemplação.
A seu próprio modo poderoso e invisível, o próprio silêncio é uma obra de arte eloquente. É a Grande Muralha do Silêncio que J.D. Salinger ergueu à sua volta.
Não é um silêncio passivo; é palpável e provocador. É o tipo de silêncio que as pessoas fazem romarias para testemunhar, para desafiar. É um silêncio que respeitamos e que ao mesmo tempo nos ofende, um atrativo e uma reprimenda. Alguma coisa nos atrai até esse silêncio, nos leva a questioná-lo, a testá-lo.
Há uma linha em "Mao 2", o romance de Don DeLillo sobre um escritor recluso, semelhante a Salinger, que se indaga por que tantas pessoas são obcecadas por sua invisibilidade, sua condição oculta, sua ausência.
"Quando um escritor não mostra seu rosto", Don DeLillo responde a si mesmo, "isso se torna um sintoma local da famosa relutância em aparecer manifestada por Deus".
O silêncio de um escritor não é o mesmo que o de Deus, mas existe algo de análogo entre os dois: um criador que desperta profundo respeito, alguém que, acreditamos, possui respostas de algum tipo, nega-se a nos responder, esconde seu rosto, nos priva de sua criação.
O problema -o raro fenômeno do escritor indisponível, invisível, indiferente (indiferente a nossas perguntas, indiferente ao complexo publicitário-industrial ao qual tantos servem)- é o equivalente literário ao problema da teodicéia, a subdisciplina especializada da teologia que estuda o problema da aparente indiferença silenciosa de Deus ao inferno do sofrimento humano.
E, quando um escritor não quer romper seu silêncio, pensamos em maneiras de penetrar nele à força. Pensamos em bater em sua porta ou deixar mensagens em sua caixa de correio.
Eu estava ali, diante do portão da entrada de carros da casa de Salinger, e suas duas caixas de correio acenavam para mim.
A caixa metálica cinzenta do Serviço Postal dos Estados Unidos estava trancada. Mas a seu lado havia uma caixa de correio verde-floresta, daquelas que têm um dos lados abertos, ostentando o logotipo de um jornal local, o "Valley News" de West Lebanon.
Estava vazia, excetuado um papel impresso que dava a impressão de estar abandonado ali havia algum tempo. Será que era a mensagem que outra pessoa escrevera a Salinger?
Não, era um folheto de propaganda. "ATINJA SEU ALVO EM CHEIO!", gritava o folheto, em letras hiperventiladas de oito centímetros de altura. Era um folheto promovendo folhetos promocionais feitos sob encomenda para o cliente. "PODEMOS AJUDAR VOCÊ A PROMOVER SUA EMPRESA!", dizia o folheto a J.D. Salinger.
Era a cultura autopromocional americana buscando como alvo a última pessoa privada que restou no país.
Isso me fez pensar duas vezes sobre deixar uma carta ali, uma mensagem para Salinger. Me fez pensar mais do que duas vezes sobre o que eu poderia dizer, ou se seria melhor simplesmente ir embora e deixar seu silêncio em silêncio.
Será que qualquer mensagem, por mais sincera que fosse, não seria um tipo de sacrilégio semelhante, apenas mais um folheto promocional tendo Salinger como alvo?
Percebi que eu teria que repensar meu próximo passo com cuidado, porque eu poderia acabar fazendo alguma coisa da qual talvez me arrependesse por muito tempo.
Os silenciosos falam
Na noite antes de partir para New Hampshire, ouvi uma história estranha sobre a "muralha" de J.D. Salinger: a história dos ferimentos falsos.
Aconteceu depois que eu mencionara meu fascínio pela muralha de Salinger numa palestra que dera em Harvard.
Na esperança de conseguir obter mais alguma informação pouco conhecida sobre Salinger (ou, pelo menos, seu endereço) dos repórteres especializados presentes na platéia, revelei a eles qual era meu conceito para a expedição: eu viajaria até Cornish, o minúsculo povoado nas montanhas, 30 km ao sul de Hanover, que sedia o retiro silencioso de J.D. Salinger há 44 anos.
Não para perturbar Salinger, não para bater à sua porta ou ficar esperando diante de seu portão. Não, eu disse a eles: o que eu mais queria era olhar a muralha de Salinger.
Era verdade, pelo menos em parte. Se Salinger por acaso saísse de trás da muralha e começasse a discutir comigo "o som de uma mão batendo palmas", eu não me negaria a conversar com ele. Mas eu não imaginava que isso fosse acontecer.
Minha idéia era que a própria muralha de Salinger -não apenas o muro físico de madeira ou pedra que eu ouvira falar que ele construíra em torno de sua casa, mas a muralha metafísica, a muralha de silêncio que erguera em torno de si mesmo, de sua obra- era, de certo modo, sua obra de arte mais poderosa, mais eloquente, possivelmente a mais duradoura.
Expliquei meu conceito do Partido do Silêncio: como escritores como Salinger, Thomas Pynchon e William Wharton -e, até certo ponto, Don DeLillo (que não é tanto um silencioso quanto um tímido avesso à publicidade)- constituem uma minoria pequena, porém poderosa, na cultura norte-americana.
Não formam tanto um partido quanto um grupo de espíritos irmãos cujas variedades de silêncio consciente abrangem desde escrever, mas não publicar (Salinger) até publicar, mas não aparecer em público (Pynchon), passando por publicar sob pseudônimo para evitar publicidade (Wharton) e publicar, mas não se promover ativamente (DeLillo).
Suas diferentes formas de reticência e ocultação própria constituem, cumulativamente, uma dissensão provocante da cultura da autopromoção que inundou o mundo literário contemporâneo, uma reprimenda ao "ruído branco" que ruge alto (título de um livro de DeLillo) do complexo publicitário-industrial que domina a cultura contemporânea da celebridade.
E, de repente, parece que os silenciosos haviam começado a falar -a seus próprios modos idiossincráticos, feitos de gestos.
Em janeiro, o mundo literário ficou atônito diante da informação de que Salinger havia promovido uma pequena, mas significativa reversão -talvez não uma abertura, mas pelo menos uma brecha- na muralha.
Inexplicavelmente, quixotescamente, havia autorizado uma pequena editora (a Orchises Press, de Alexandria, Virgínia, especializada em poetas contemporâneos pouco conhecidos) a lançar uma edição em capa dura de seu último conto publicado, "Hapworth 16, 1924", que saiu pela primeira vez na edição do dia 19 de junho de 1965 da revista "The New Yorker" e sobreviveu principalmente em fotocópias pálidas de enésima geração.
Foi uma surpreendente inversão de atitude, porque havia três décadas Salinger se negava a permitir que o conto fosse editado em formato de livro (como fizera com seus outros contos publicados na "New Yorker", como "Franny" e "Zooey").
E ele adquirira o hábito de, por trás de sua muralha, lançar ataques legais contra a publicação não autorizada de outras obras não canônicas (alguns de seus primeiros contos que não foram reunidos em coletâneas e algumas cartas pessoais que um biógrafo encontrou em arquivos universitários).
Ele havia até conseguido suprimir citações de obras já publicadas -no final do ano passado, por exemplo, seus agentes obrigaram uma página de Internet sem fins lucrativos dirigida por um fã de "O Apanhador no Campo de Centeio" a parar de oferecer citações do livro a outros fãs.
À primeira vista, a iniciativa relativa a "Hapworth" não era uma novidade tão espantosa assim. Afinal, Salinger não estava divulgando o suposto romance ou romances em que vem trabalhando nas últimas três décadas -os livros que, segundo algumas fontes, vão continuar juntando poeira em algum cofre até (pelo menos) depois de sua morte.
Ele não estava se propondo a fazer uma turnê promocional de "Hapworth". Mas, contra o pano de fundo da muralha -a monolítica e implacável muralha de silêncio que erguera a seu redor-, a decisão parecia representar o augúrio de algo mais do que uma simples nova edição de um conto antes publicado numa revista.

Tradução Clara Allain

LEIA a continuação dessa reportagem amanhã, na "Ilustrada"

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