São Paulo, terça-feira, 4 de novembro de 1997
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Ser corintiano é...

FÁBIO VICTOR; PAULO COBOS
DA REPORTAGEM LOCAL

PAULO COBOS
Qual é o preço para jogar no time mais pressionado de São Paulo, que possui a segunda maior torcida do Brasil, a mais fanática e passional entre todas?
Compensa ser criticado diariamente ou até ser apedrejado por seus próprios torcedores para vestir uma camisa que tem a fama de guardar a mística de um time guerreiro? Com a palavra, Basílio, Casagrande e Wladimir.
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Folha - O momento por que passa o Corinthians, com as sucessivas cobranças da torcida e a iminência do rebaixamento no Brasileiro, trouxe à tona um tema recorrente: o jogador corintiano parece ter sobre si uma carga de cobrança que parece ser única no país. Como vocês analisam isso?
Wladimir - Eu acho que essas cobranças vêm concomitantemente com a formação das torcidas organizadas. O torcedor anônimo cobra à maneira dele. Não vai mais ao estádio, não assiste mais jogo, fica puto. A torcida uniformizada, não. Agora, ela se acha dona do clube, com direito de fiscalizar, de contratar treinador.
Casagrande - Eu acho que o Wla está certo quando diz que os limites ultrapassaram completamente. Não era assim anos atrás. Agora, em relação aos jogadores, a pressão no Corinthians sempre foi a mesma. Só que tem uma diferença muito grande. Os jogadores de hoje não têm um vínculo com o clube. O Wla nasceu no Corinthians, jogou lá de 69 até 85, direto. Eu comecei no Corinthians em 74, no juvenil, joguei até 86.
O Basílio veio da Lusa, mas jogou seis anos no Corinthians. Vê se fica alguém mais de um ano num clube hoje. Eu acredito até que eles estão sentindo pressão. É que eles não têm vínculo nenhum com o clube.
Folha - Vocês acham que a torcida percebe isso?
Basílio - O torcedor quer cobrar. O jogador tem que ter estrutura. O Corinthians é diferente de qualquer outro clube. Mas quem está chegando lá sabe que ele é diferente, tem que ter um equilíbrio muito grande. Porque eles estão se identificando com o Corinthians só nos momentos bons. Quando o Corinthians foi campeão agora (no Paulista-97): "Não, eu sou, eu sou". Acabou o campeonato, muda. Aquela reivindicação que o Donizete foi fazer (por aumento de salário) era um direito dele, concordo. Mas não deveria ter vindo a público. Porque o torcedor aceita você fazer uma reivindicação até o momento em que você está rendendo alguma coisa. Quando você passa a não render, os caras vão te cobrar até o infinito.
Folha - Jogador que fala de dinheiro no Corinthians fica marcado com a torcida?
Wladimir - Fica. Porque o dirigente usa isso contra ele. É uma arma contra ele. Jogador que fala em dinheiro não pode nunca atravessar uma fase ruim.
Basílio - Nós pegamos uma época em que existia um pouco mais de respeito. Não havia tanta divulgação de valores. No Corinthians, na minha época não se podia falar de valores. Eu citei o seu exemplo (do Wladimir) quando o (Vicente, presidente do Corinthians) Matheus fazia propostas para você. Chegando a um ponto em que os Gaviões se reuniam para querer fazer o contrato para você.
Folha - Como foi essa história?
Wladimir - Isso é legal. Eu fiz uma proposta para o Matheus, e ficamos negociando coisa de 20 dias, quase um mês. A torcida se cotizou e levou um cheque até ele. Os Gaviões têm essa "possessividade". Aliás, a minha relação com a torcida do Corinthians era meio essa. Acho que, pelo fato de ser franzino, ela tinha uma relação de paternidade. Se ela adotou um cara, aquele cara é "imexível".
Folha - Quem é "adotado" hoje?
Casagrande - Não tem nenhum, eu acho.
Wladimir - Não tem nenhum.
Folha - E o Ronaldo?
Casagrande - Ronaldo acho que já chegou ao limite.
Wladimir - Tem muita divisão em relação a ele.
Folha - Mas paixão é inerente à condição de torcedor. Por que, no Corinthians, vira obsessão?
Casagrande - Vou te dizer uma coisa. Flamengo é uma paixão enorme. Acho que é mais que o Corinthians. Não estou falando da cobrança, mas de paixão. O envolvimento dos torcedores é diferente. Eles te apóiam o jogo todinho, mesmo o time mal. Você perdeu hoje, tem aquela pressãozinha, no outro dia não tem nada. Em festa, você cruza com os caras: "Pô, malandro, o time tá mal", e passa batido. Não é o Corinthians, é a diferença das cidades. É a cultura das cidades. São Paulo é mais agressivo que o Rio, isso é óbvio. O paulistano é superagressivo. O Rio de Janeiro é mais tranquilo, há qualidade de vida. O cara vai correr na praia. O paulistano fica estressado e não tem como sair do estresse.
Folha - Vocês já tiveram problemas particulares com torcida?
Basílio - A pior situação aconteceu quando eu era treinador, em um jogo em Goiânia. Após uma derrota, as organizadas apedrejaram o nosso ônibus, inclusive me ferindo. Só que a cobrança, naquele caso, era em cima da diretoria, o que acaba sempre refletindo no elenco.
Wladimir - Eu tive um problema sério em 84, após uma derrota para o São Paulo. Dias antes, o Carlos Alberto Torres, que era nosso técnico, foi demitido. Ele saiu acusando a mim, ao Edson e ao Juninho de dividirmos o elenco, formando igrejinhas. A torcida acreditou e invadiu o vestiário exigindo explicações. Eu não dei satisfações.
Folha - Essa relação íntima que a torcida tem hoje com o jogador, de saber onde mora, ter o telefone. Na crise, isso complica ou ajuda?
Casagrande - Não, isso aí não tem que ter. Torcedor é torcedor, jogador é jogador.
Folha - A mudança de comportamento da torcida em relação à época de vocês é tão radical assim?
Casagrande - Na nossa época tinha mais torcedores no estádio. Nós jogávamos no Pacaembu com 35 mil, 40 mil torcedores toda quarta à noite. Mais pessoas e menos agressividade.
Wladimir - Isso tem a ver com a situação do país. Tem relação com a remuneração dos jogadores, que ganham muito. É um absurdo em relação ao que ganha a média dos brasileiros. O futebol se profissionalizou, o marketing esportivo é grande. Então acho que eles têm que ganhar, pois os clubes estão ganhando. Mas quem não está ganhando é o trabalhador.
Casagrande - O que invoca o torcedor também em relação a salário é o seguinte: há 10, 15 anos, o jogador brasileiro, para ter independência financeira, tinha que sair do país. Hoje ele volta. Quando que eu ia voltar, se eu estivesse no Valencia, há dez anos?
Basílio - Mas eu digo que, atualmente, é uma questão de cabeça. O Raí saiu daqui e foi com o propósito dele. Viveu um momento difícil, mas chegou lá e reverteu tudinho.
Casagrande - O Marcelinho com dois meses quer voltar e não quer devolver a grana. Isso é roubo. Ele fez um contrato de três anos, ganhou 15% do passe, US$ 600 mil.
Wladimir - Não, US$ 1,2 milhão.
Casagrande - É. Aí ele quer voltar, com dois meses. O Valencia falou: "Eu te libero, mas devolve a grana que você pegou por três anos". Ele falou: "Não tenho que devolver". Isso é roubo.
Folha - A intimidade que o torcedor tem com os jogadores parece que chegou também à diretoria...
Wladimir - Com certeza. Porque eles (torcedores) acabam atendendo à solicitação do dirigente. O que devia ser canalizado para o dirigente é transferido para o atleta.
Folha - Além da torcida, o que torna mais difícil a vida do jogador no Corinthians?
Basílio - A vaidade. No Corinthians, mais que em qualquer outro clube, o grupo tem que ser unido. Não adianta ter o Ronaldo de líder, pois não resolve nada. No atual grupo, a vaidade impera.
Wladimir - Tem gente no time que parece com o Leão, que jogou com a gente em 83. Pessoas assim estragam qualquer ambiente. Com eles, é impossível ter união.
Folha - Que grandes jogadores foram queimados no Corinthians pelas cobranças da torcida?
Wladimir - Tem o caso do César, goleiro que jogou com a gente em 82. Foi um grande goleiro e foi crucificado por apenas um erro (um gol sofrido contra o Grêmio, na semifinal do Brasileiro de 82). No Corinthians, enquanto joguei lá, nunca vi goleiro como ele.
Casagrande - O time de 85 era uma verdadeira seleção. Talvez aquela situação tenha um paralelo com a atual. Jogadores como Serginho e De Léon, que eram craques, se isolaram quando sentiram o ambiente do clube, que era péssimo. Um dos pivôs da crise era o Dunga, que, mesmo muito jovem, já arrumava muitos problemas. O seu relacionamento com o resto do elenco era péssimo. Ele sempre falava pelas costas.
Wladimir - O Dunga deveria mudar de nome para Zangado. Eu sempre fui um cara tranquilo, mas com ele eu quase saí no braço. No treino eu sempre entrava forte nele. Ele só deturpava o ambiente.
Basílio - O Túlio chegou na hora errada. Ele tem o estilo que a torcida gosta, mas não foi entendido.
Folha - Que característica o jogador não pode ter no Corinthians?
Wladimir - Frieza. No Corinthians, decididamente, frieza é uma praga. Se não mudar essa maneira de ser, não há jeito.
Casagrande - Compare o Souza ao Mirandinha. Prefiro o Souza, que é aquilo. Se está bem, não fala nada. Se está mal, não fala nada. Prefiro esse cara àquele que, quando está bem, sorri, joga pra caralho, corre e, quando está mal, se esconde. O Rincón quebrou a cara do Mirandinha por isso.
Wladimir - O Donizete é assim também. É folgado pra caramba.
Casagrande - Não, ele é legal. Conversou com ele pessoalmente?
Wladimir - Levei uns garotos da escolinha lá ao Corinthians. Ele foi o único que não deu autógrafo.
Folha - A torcida consegue perceber o atleta que faz corpo mole?
Casagrande - Um jogador como o Souza, para mim um craque, não apresenta o espírito de luta necessário para jogar lá. E no caso dele, assim como no do Ronaldo, a torcida já cansou.
Folha - Basílio, você que exerceu as duas funções: é mais difícil ser técnico ou jogador no Corinthians?
Basílio - Ser treinador. Jogador não tem tanta cobrança.
Folha - Assim como as pressões no Corinthians são enormes, vários jogadores falam que tem o outro lado da moeda. Quando o título vem, é mais gostoso...
Casagrande - Eu já acho que a coisa está mudando. Acho que o Paulista não está contando muita coisa mais, não. A torcida do Corinthians nem lembra mais, já ficou saturada. Hoje tem que ser campeão brasileiro, da Libertadores. Antigamente, o Paulista dava emprego para um técnico por pelo menos um ano.
Wladimir - O Casa não viveu, mas o Basílio viveu 76. Foi a maior festa que eu vi em todos os tempos (o vice-campeonato brasileiro). A gente ganhou do Fluminense no Rio, chegou ao aeroporto e havia 3.000 pessoas. A gente pegou o ônibus, sabe a (avenida) Rubem Berta, é grande pra cacete. Tinha um cordão humano dos dois lados, as pessoas acenando lencinhos.
Casagrande - Hoje no Corinthians ganhar o Paulista é a mesma coisa que o meu time ganhar o campeonato de futebol soçaite.

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