São Paulo, terça-feira, 4 de novembro de 1997
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Crash acaba em filme 'O Especulador do Futuro'

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O crash da Bolsa tem um lado bom. O crash pode ser "in", "cool".
O crash nos coloca mais perto do duro e "selvagem coração da vida". É bom para entendermos o indeterminismo do mundo, longe dos mitos de controle, das burras certezas. O crash também é cultura.
O crash é bom para acalmar consciências; já que não podemos fazer nada pelos excluídos, podemos comer nosso caviar cético com dorida tristeza. O crash é filosófico. Valoriza nossas propriedades, cada vez mais exclusivas e concentradas. É doce andar em BMWs com sabor de sangue. Acrescenta "raro prazer" perverso, um "after taste" ao luxo.
O crash é também um revitalizador da religião. FHC já disse que "só Deus sabe" quando vão baixar os juros. Ninguém entende de economia; só Deus. Nesta linha d. Paulo Arns deveria ser diretor do Banco Central, com linha direta ao criador, na mesa do "over" do céu. Isto nos tira o fardo horrível da responsabilidade.
O crash é bom para acabar com a "esperança", este sórdido sentimento burguês, o pior dos sentimentos, como disse Borges.
Por outro lado, o crash é bom para revitalizar humanismos esquecidos. Todo mundo que perdeu grana alavancada começa a ficar bondoso, a falar em "pobres da África", em "ética global". Tem uns babacas sugerindo que, no ano 2000, os ricos perdoem a dívida externa dos duros. Ah..ah...ah...boa idéia!
O crash é bom para a poesia; economistas começam a citar Ezra Pound: "Com usura morre o amor entre os amantes... etc."
O crash é bom para ressuscitar o imperialismo nostálgico, o bom e velho inimigo que nos animava a viver.
Só que agora o imperialismo não tem mais Tio Sam; é conhecido como "ataque especulativo", uma bomba H invisível, que ninguém sabe quem jogou. É o novo ícone de nossa paranóia, que não sabemos de onde vem. Afinal, precisamos de inimigos para absolver nossa impotência.
O crash até pode ser bom para as "reformas do Estado", (estes furúnculos encroados na nacionalidade que nunca virão a furo), pois provoca o medo, único estímulo para congressistas canalhas. Como dizia Nelson Rodrigues (sempre este homem fatal...): "No Brasil, só o medo da polícia cria consciência social".
O crash mostra que há uma "terceira coisa" no ar que ninguém conhece, mostra que o neoliberalismo é uma bosta e que o socialismo tardio também é uma bosta.
O crash pode ser bom para o cinema: filme-catástrofe "O Especulador do Futuro", com Schwarzenegger no papel de George Soros e Paul Newman como Alan Greenspan, do FED.
Muitos efeitos especiais: excluídos se matando, bolsas explodindo em câmera lenta etc... com direção de Woo, claro, de Hong Kong.
O crash é bom para vermos que somos o puteiro do G-7. Com juros de 43% ao ano, acabamos com a inflação, mas o preço é alto. Somos o "over" deles. Aplicam aqui como fazem turismo sexual. Em casa eles não se permitem estas práticas perversas como comer menininhas ou derrubar moedas na Tailândia.
O crash também é bom para acabar com grandes euforias, pois ele prova que a Lei de Murphy, ao menos aqui, é infalível, mais que as leis do mercado: "Se alguma coisa pode dar errado, ela dará". Ou seja, certamente haverá desvalorização cambial.
O crash desnuda nossa tragédia ibérica. Os deputados morrem, o país acaba mas estes oportunistas não farão reforma nenhuma. Morreremos de nossa doença infantil: o patrimonialismo. O crash mostra que ainda temos vícios e cultura de Estado-Nação, quando o mundo já é outro. Ainda pensamos com ferramentas velhas: pátria, desenvolvimento, controle político, quando tudo isso foi para o ..., digamos, brejo.
O crash também é um castigo merecido para importadores de tamagochis e carros computadorizados. O crash mostra que os brasileiros importadores e consumistas são grandes químicos: transformam reais em merda. O crash é bom para prejudicar Miami. O crash pode acabar com as festas do ano 2000 (já sinto um tédio antecipado com a eufórica passagem de século).
Imaginem a ressaca do primeiro de janeiro de 2000, quando virmos os meninos de rua ainda pedindo esmola.
O crash pode ser bom para injetar no FHC mais militância e imaginação. O crash é bom também para vermos a escrotidão da oposição do "quanto pior, melhor". O crash é a apoteose, o prêmio Moliere, o Oscar do PC do B.
O crash pode ser bom para o mercado. Com o aumento da miséria do mundo (já somos 3 bilhões de excluídos), poderá surgir um novo mercado, o "shit market", o mercado do desespero. A igreja do Edir já descobriu isso: vende merda e nada aos desgraçados. O "shit market" pode salvar o capitalismo ocidental que venderá produtos escrotíssimos e baratíssimos para africanos, nordestinos e indianos... Merda também é mercado.
O crash é bom para justificar broxadas: "Minha filha, desculpe... é o crash!".
O crash cria um suspense, a vida fica mais excitante. O crash é um "thriller", um filme de suspense: "Quem fez o ataque especulativo?" Quem são os bandidos globais? O G7, a CIA, o FMI, Soros? Quem? Eu tenho uma tese: a China.
Vejam os indícios: o Jiang estava em Washington com Clinton na hora do crash. Na entrevista coletiva, o Clinton criticava o Jiang com o papo de "direitos humanos". O china-pau sorria, chefe de bilhões de comunas com celular, pensando em Marx: "Tudo que é sólido desmancha no ar, como as ações de Hong Kong, como o Japão..."
Talvez a China seja a nova etapa do socialismo: repressão com mercado aberto, dólares entrando e tiro na nuca de dissidente. Quem poderá vencer este império? Marx estava certo: o socialismo virá como última etapa do capitalismo. Marxismo homeopático: só o capitalismo oriental acaba com o capitalismo ocidental.
Comunismo-capitalista.
Por último, o crash é bom para descobrirmos nosso lugar no mundo: os excluídos somos nós.

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