São Paulo, quarta-feira, 5 de novembro de 1997 |
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Com ou sem sushi, programas são horríveis
MARCELO COELHO
Não há muita diferença entre fazer um concurso de cachorros que cantam, como Gugu, e mostrar uma mulher nua. A estupidez é igual. Reage-se não contra a estupidez, mas contra o sexo. O quadro da mulher-bandeja não é ruim, a meu ver, por seu apelo pornográfico, mas por degradar uma pessoa. O ponto foi destacado por Fernando Barros, no TV Folha de domingo. Essa degradação humana está presente em todos os programas do gênero. Desde o sujeito que come lâmpadas em troca de uns tantos reais no "Tudo por Dinheiro", ao "Namoro na TV", em que determinado pretendente critica o tamanho das gengivas de sua possível namorada; desde as "videocacetadas" aos reencontros sentimentais e realizações de sonhos na "Porta da Esperança". Tiririca de sunga na banheira não é menos horrível do que o próprio cantando um de seus sucessos. Centralizar na questão sexual a crítica a esses programas é uma besteira completa. Reprimiram um pouco a exploração erótica; mas não é preciso ter bola de cristal para dizer que, quanto mais se reprimir o sexo, mais barbaridades tendem a aparecer como seu substituto. Faço até um raciocínio extremado. A exibição de mulheres nuas, nesse horário e para esse público, tem uma função desestabilizadora. Vejamos. Quando um programa dominical mostra pobres coitados capazes de fazer "tudo por dinheiro", quando explora deficientes físicos e idiotas, tende a provocar no indivíduo de classe D o seguinte raciocínio: "Bem, não estou tão mal assim, há algo que eu posso desprezar, há gente mais humilhada do que eu". Uma "videocacetada" ajuda qualquer pessoa a se sentir menos ridícula do que é. O efeito, assim, é conformista. Uma bela mulher, nua, servindo de travessa a atores globais que se deliciam com culinária japonesa é um evento mais complicado. Remete simultaneamente ao privilégio e ao ascetismo. Ascetismo porque pobre nenhum sonha com sushis ou sashimis. Sonha com churrascos, macarrões e feijoadas. De certo modo, encenava-se ali não o banquete, o regalo dos esfomeados, e sim a restrição dos apetites. Coisa que só os bem alimentados, gastronômica e sexualmente, são capazes de apreciar. Pode-se dizer que o espetáculo nem por isso era menos conformista e conservador. Sabemos que, para grande parte dos despossuídos, a mera exibição do luxo e do privilégio, nas vitrinas de um shopping, por exemplo, instiga pouco à revolta social, servindo, ao contrário, como propaganda do sistema. Mas a mulher nua na TV é desestabilizadora num ponto crucial. O espectador pobre se compara a um deficiente, se compara a um calouro, se compara ao comedor de lâmpadas e sai feliz do programa. Só que, vendo a mulher nua, compara-a à própria mulher. E não sai tão feliz assim. O quadro da mulher nua, o apelo "erótico" desses programas, seria o único fator, talvez, a desestabilizar a extrema brutalidade ideológica que é imposta ao espectador dominical. E justamente se protesta contra isso. É como se, sob a capa de uma crítica (aí eles exageraram! aí é demais!) fosse buscada uma "normalidade", um retorno de Faustão e Gugu a seus "velhos padrões", que, esses sim, são escandalosos. A lógica desses programas sempre foi a lógica da degradação. Mesmo quando Gugu se disfarça de mendigo, num quadro supostamente "de denúncia", o que está sendo encenado é o fato de que até ele, o Gugu, deve degradar-se em prol do bom funcionamento do programa. Faustão, que começou numa sexta-feira de madrugada na Bandeirantes como um mestre do auto-escracho, surge na Globo como como o escrachador de todo mundo; mas com uma vantagem. Pode escrachar os outros "com mais humanidade", com um falso calor humano. Sabe de nossas fraquezas e acidentes; participa dessa condição; é gordo; e, assim como na Bandeirantes reclamava das precariedades da produção, agora põe a culpa "no Boni" pelas barbaridades que apresenta. É um autodegradado, como Gugu quando se veste de mendigo. Sobra Silvio Santos. Ele não se degrada, porque ascendeu socialmente. De camelô a empresário, manipula o "povão" com um prazer ao mesmo tempo sádico e narcíseo. A manipulação atinge aqui seu estado puro, chega a ser uma arte. Não é tão grosseira, pelo menos. Quando Silvio Santos entrevista um infeliz qualquer, ele exibe os fundamentos de sua arte, num misto de simpatia e opressão. Faz-se de idiota com prazer, mostra-se inteligente com sorrisos. Essa mistura fica parecendo, para o público, especialmente "humana". Isso porque uma opressão explícita, mas sorridente, chega a ser mais honesta do que a apresentação robótica e autovitimada, desenganada e otimista, de Faustão ou de Gugu. É o mesmo processo que faz o paternalismo de ACM mais bem-sucedido que a truculência de Maluf. Mas é Maluf quem leva vantagem nesse teatro de violências. A lógica do Projeto Cingapura -um apartamento premiado para milhões de favelados- é a mesma que preside os concursos e jogos de televisão. O imbecil se sente feliz só pelo fato de ter aparecido diante das câmeras. Mesmo que ele perca o concurso da "Roda Fortuna", sai contente, porque esteve na TV. O grande sorteio está em ser selecionado para o programa, não em ganhar. Isso porque ele entrou na lógica da exclusão: já é um dos poucos, já é um eleito, já é um privilegiado, só porque apareceu na televisão. O Brasil é um país conservador na mesma medida em que, como os Estados Unidos, mas em grau menor, apresenta-se como "terra das oportunidades". Os sorteios, o jogo do bicho, os programas dominicais fazem da degradação e do sucesso um teatro da estupidez e da falsa felicidade. A oportunidade, aqui, é uma fuga, e humilhar-se é o preço pago para conquistá-la. Cria-se um individualismo degradado, uma "dessolidarização" masoquista, um "interesseirismo" lúmpen. É como se o egoísmo burguês clássico se transformasse no discurso daquele personagem, cretino e explorado, que ainda assim acredita "levar vantagem em tudo". Perto disso, uma mulher nua e um sushi são coisas de somenos. Texto Anterior: Siza expõe móveis e acessórios Próximo Texto: Cinemateca inaugura sala em sua sede Índice |
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