São Paulo, sexta-feira, 7 de novembro de 1997
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Escritor se aproxima da lenda Elvis

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

O escritor norte-americano J.D. Salinger, durante décadas, alimentou seus leitores de expectativas e devaneios, pistas soltas ao acaso para aqueles que esperavam sua grande obra, construída em silêncio em seu esconderijo tragicamente público.
Sua fuga, de certa maneira, se realizará apenas enquanto puder permanecer uma figura visível. Ninguém sabe de Salinger, e todos sabem onde encontrá-lo.
Mas o fato é que isso já não faz qualquer diferença, pois para cada fanático -ou para aquele levemente interessado-, "O Apanhador no Campo de Centeio" e "Nove Histórias" foram promessas impressas de tudo aquilo que viria. A obra máxima. Um budismo ocidental que poria abaixo os modelos de ficção -e de comportamento social- celebrados nos EUA.
Salinger ofereceu um garoto sensível no lugar de um homem alcoólatra e derrotado.
Um conto sobre sanduíches sem maionese poderia ser tão -ou mais- profundo quanto um romance sobre a falta de sentido no mundo após duas grandes guerras mundiais.
Havia então suas histórias sobre a família Glass, composta de pais compreensíveis e filhos inteligentes e infalíveis, capazes de discutir poesia chinesa no almoço ou o real significado da vida nas primeiras horas da noite.
E, claro, houve o rebelde Holden Caulfield, de "O Apanhador...", amado por adolescentes pela capacidade que tinha em desafiar a ordem e colocar sempre as certezas em questão, transformando-se, no final dos anos 50, no James Dean das letras norte-americanas.
Mas Salinger queria ser Marlon Brando. Preferiu colocar o mito no lugar da própria obra. Não lhe bastava ser um escritor criticamente reconhecido. Apostou que poderia ser uma lenda e estourou a banca.
E a cada ano a espera era mais angustiante. A Guerra Fria piorando, a contracultura e os hippies, a crise do petróleo e as revoluções na América Central.
O que ele teria a dizer sobre tudo isso? O que o sábio Seymour Glass poderia fazer para esclarecer seus leitores?
Nada. Silêncio em nome da privacidade a qualquer custo. Salinger continua escrevendo, mas para os próprios olhos. Salinger não escreve mais. Salinger não existe, é uma ficção. Apenas Elvis é tão grande em lendas quanto Salinger.
Um dia, a notícia de um incêndio em sua casa. Dizem que seus manuscritos viraram cinza. Mais de 15 milhões de pessoas na Terra (os consumidores de seus livros) se amedrontam. O que fazer? O que pensar?
A grande verdade é que a obra esperada não veio. Salinger talvez tenha entendido antes de qualquer um que seu talento era limitado; à maneira de uma criança brilhante da qual todos esperam um grande futuro e, assim que torna-se adulto, nada mais acontece.
Salinger preferiu não se expor. Não receber resenhas maldosas sobre seu trabalho, não escrever uma história realmente ruim, em que fossem apontados cada um de seus defeitos.
Não queria estar presente quando lhe dissessem que seus personagens adolescentes falam e se comportam como ventríloquos de um adulto desesperado e afetado por um humor doentio. Optou por não ouvir o que agrada o comportado leitor da classe média.
Talvez o que se toma como uma atitude quase religiosa -esse abandono do público- seja apenas sua vaidade agindo, a ambição desmedida deixando todo o resto para trás.
Salinger é, por fim, um mito na cultura da América. Uma esfinge que derrotou a crítica com o mistério de sua existência. Um objeto raro que, apesar de todos os esforços, permanece sem verdades. Sobrevive somente no território das suspeitas.

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