São Paulo, sábado, 8 de novembro de 1997
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Um olhar intimista

AGNALDO FARIAS

não vou falar sobre o martírio de Camille Claudel: a controvérsia sobre os roubos de Rodin, o terror persecutório que ela nutria por seu ex-mestre e amante, que a fazia destruir suas obras tão logo as acabava. Tampouco discutirei a intrigante relação entre arte e "loucura" que, no caso da artista, traduziu-se na noite de 30 anos (1913-1943) que ela viveu em clínicas psiquiátricas. Não que esses aspectos não interessem para a compreensão de sua obra. Não me alinho tanto com a corrente formalista a ponto de desprezar a biografia de um autor quando do estudo de sua obra. Há casos e casos. Se toda obra resulta do exercício de formalização de idéias, existem aquelas em que o exame da história pessoal pode contribuir para sua compreensão.
Se em Camille Claudel esse tipo de tratamento é válido, a curadoria, aliada à cuidadosa montagem, soube transformá-lo em indispensável.
Não bastasse o desenho da exposição, dando a ver com clareza as linhas de força da trajetória da artista, há esse catálogo esclarecedor. Nele há impressionantes excertos da correspondência pessoal entre Camille e Rodin, Camille e a família; textos de época, entre os quais se destaca o comovente depoimento do poeta Paul Claudel, irmão da artista; uma substantiva leitura da trajetória de Camille Claudel, acompanhada de sua cronologia, e, o que é fundamental, análises de todas as obras apresentadas.
Tudo isso, conforme já indica o título do texto de abertura, "A Arte ou A Impossível Salvação", concebido para demonstrar que o interesse gerado pela obra de Camille Claudel repousa no fato de que ela conseguiu dar expressão plástica a seu tormento. Com isso, reafirma-se o pressuposto segundo o qual, em arte, o que importa não é o sentimento em si, mas a qualidade com que é formalizado.
Faço esse comentário porque, no meu ponto de vista, e a despeito da proliferação de estudos de gêneros e afins, o que importa mesmo é a obra. E ao leitor, que neste momento está me vendo como arauto do óbvio, gostaria de lembrar a face desgrenhada que converteu Claudel em ícone feminista, de fatura bastante ressentida, aliás. Do mesmo modo vale lembrar quanto a obra de Frida Khalo, escapando das fissuras do muro criado a seu redor por Diego Rivera, tem servido a propósitos extra-estéticos.
Por tudo isso, interessa-me afastar por um momento a biografia da artista para me concentrar em sua obra. E o que encontro é uma obra com momentos de grande força, mas que não logra ultrapassar o limiar de qualquer ruptura, conforme deixa transparecer o próprio catálogo. Portanto, não se deve compará-la com a de Rodin, este sim revolucionário.
Dele, ela herdou e desenvolveu com maestria a técnica da modelação. Segundo uma formulação clássica, modelar distingue-se de esculpir porque o primeiro procedimento opera por adição e o segundo, por subtração.
O resultado são imagens cuja expressividade e movimento dir-se-iam brotar das entranhas da matéria manipulada.
Essa expressividade da matéria ganha outro sentido em função da escala da obra realizada. As conquistas de Claudel, a bem dizer mais por injunções financeiras do que por opção estética, se deram no terreno do pequeno formato, cujo apelo à contemplação é totalmente distinto da escultura monumental, que prevalecia em sua época. Enquanto esta ergue nossa vista, desprende-a da linha do horizonte, onde por atavismo telúrico a deixamos pousada, a obra de pequena escala nos convida ao mergulho em profundidade.
Contemplar as obras de Claudel implica um olhar de vocação intimista, uma experiência obtida em uma espacialidade de âmbito restrito, fechado, onde só cabem o espectador e a obra. Nelas, o olhar se desenvolve pelo esquadrinhamento da superfície, inventariando seus acidentes, deslizando pelos sulcos e variações de textura e luminosidade. Situações que ela soube explorar com profundidade, seja pela tematização da face sombria de nosso mundo interior, seja pelo requinte em mesclar materiais como o bronze, o mármore e o ônix.
A força da obra de Claudel reside na maneira como ela tirou partido desses elementos, tensionando-os, com mais ou menos sutileza, sempre com vistas a realçar as imagens de erotismo, dor, abandono, súplica, solidão, decadência e morte que são presenças recorrentes em sua obra.
Sua trajetória balança entre o naturalismo dramático e o acento fantástico, com bons resultados nos dois caminhos. Em ambos os casos o tensionamento é a tônica, como se pode ver nas obras em que a limpidez de acabamento contrasta com a nudez crua de um corpo ou naquelas em que a própria imagem traz a dor estampada. Para alcançar esse efeito ela combina tratamentos diversos na mesma matéria: deixa-a lisa ou crispada; ou então faz uso de estruturas compositivas em que prevalecem movimentados vetores diagonais.
A poética de Camille Claudel assenta-se sobre um solo movediço, onde a planura previsível e desejada está sempre prestes a ser destruída, seja porque há algo para além de nosso controle, seja porque qualquer solo que pisamos é uma tela fértil para nossas projeções. Por isso são fascinantes as metamorfoses que seus poucos e recorrentes temas vão tendo, a maneira como submergem sob o orgânico. É o caso dos corpos que parecem engastados em rochas e troncos; os cabelos que vão se medusando; as imagens de envelhecimento e corrosão; os ambientes que pensávamos adormecidos e que repentinamente despertam para se insurgirem contra as pessoas.

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