São Paulo, sábado, 8 de novembro de 1997
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O equivalente moral da guerra

RUBENS RICUPERO

A expressão é usada pelos norte-americanos para definir um acontecimento com o poder que em geral só a guerra tem para unir um povo e levá-lo a sacrifícios heróicos. Algo assim como a crise asiática e seus efeitos sobre nós, em boa hora utilizada pelo governo para tentar mobilizar a sociedade a fim de energizar um plano que começava a dar sinais de desaceleração.
Nossa vulnerabilidade aos choques especulativos provém, como se sabe, de um processo inacabado de reconstrução econômica.
Para prevenir a volta da inflação, exageramos na dose dos juros e da valorização da moeda. A penetração das importações fez o resto, provocando o desastroso desempenho do comércio exterior. É o que se vê dos seguintes fatos: 1º) a participação das exportações brasileiras no total mundial declinou de 1,04% (93) para 0,90% (96), enquanto as importações saltaram de 0,60% a 1,07% no mesmo período; 2º) comparado ao aumento do volume das exportações do México, o nosso é vexatório, 1,6% contra 15,1% (94), -3,2% contra 25,7% (95), -3,7% e 16,1% (96); o México hoje exporta o dobro do Brasil e no fim da década pode chegar ao triplo; 3º) em consequência, o déficit em transações correntes alcançou 4,5% do PIB (mais de US$ 33 bilhões em julho).
A fim de financiar esse déficit, nos viciamos na dependência de recursos financeiros de fora, muitos a curto prazo, atraídos pelos juros altos. Essa forte presença estrangeira nas Bolsas e mercados financeiros exacerba a volatilidade e o perigo de contágio de choques vindos do exterior.
O estrangulamento externo decorrente da moeda valorizada e do déficit em contas correntes foi bem analisado por uma empresa financeira internacional com operações no Brasil. Até o início dos anos 90, a economia brasileira tinha condições de crescer mais de 5% ao ano, sem afetar muito as contas externas. Já agora, até uma expansão medíocre de 2% agrava o desequilíbrio. No outro extremo, 1% de crescimento anual bastava para impedir o aumento do desemprego, ao passo que hoje é necessário crescer a 4,5% ao ano a fim de simplesmente evitar que o desemprego piore. Em outras palavras, temos de correr para ficarmos parados.
Essa é a razão pela qual, ao contrário do que se afirmava até recentemente, não temos tempo para um processo de reestruturação gradualista e incerto. De qualquer forma, a discussão tornou-se acadêmica, pois a crise exterior nos impôs o seu próprio ritmo: é preciso acelerar já as reformas, o crescimento e o emprego.
Isso só se consegue com a participação consciente e ativa da maioria dos dirigentes e da cidadania. O Real deu certo porque os brasileiros acreditaram nele. A chave de tudo foi a construção da confiança por meio da informação abundante e clara. Respeitando a inteligência do povo, explicou-se, passo a passo, o que se ia fazer, o como e o porquê das decisões. O mesmo esforço deveria mostrar as razões do que falta fazer e por que disso depende a melhoria da vida das pessoas.
O roteiro de marcha foi traçado por alguém melhor do que todos nós. Ele ensinou com lucidez que:
1º) "A política de contenção inflacionária representará sempre uma etapa preliminar indispensável, mas ficará privada de sentido, se por meio dela não procurarmos a materialização de um projeto de reorganização nacional, em que se busque assegurar a viabilidade e a emancipação da economia brasileira, dentro do quadro... democrático e das reformas sociais..."
2º) "Terá de ser uma reforma incorporada às aspirações do povo, que suba das próprias bases sociais... e não uma reforma outorgada pela classe dominante, expressiva apenas de uma concessão sem conciliação... que fira de frente o problema vital da segurança econômica do indivíduo na sociedade... terá de produzir, a curto prazo e sem violência, com respeito dos direitos... uma redistribuição de renda social, de modo que... atinja a sociedade no seu todo, eleve o padrão da vida e crie (o) número crescente de ocupações e atividades..."
3º) "Mas nenhuma reforma... poderá ser implantada hoje... se não conseguirmos, em primeiro lugar, obter de nós mesmos, da classe dirigente como das classes produtoras e trabalhadoras, um nível mínimo de confiança na viabilidade de um projeto brasileiro..."
Nesta mesma data em 1963, exatamente 34 anos atrás, a revista "Visão" publicava essas palavras, pronunciadas por San Tiago Dantas ao receber o título de "homem de visão" do ano. Tendo acabado de deixar o Ministério da Fazenda, ele teria a viver menos de um ano, mas ainda veria o fim do processo democrático entre nós. San Tiago dizia, em síntese, duas coisas: 1º) que o Brasil só daria certo como projeto se o povo fosse dele o protagonista; 2º) que, para isso, era preciso fazer um povo do que não passava de uma sociedade dividida por desigualdades e exclusões que tornavam impossível um denominador comum. Um terço de século mais tarde, não se pode dizer que esses dois problemas estejam em via de superação. A revista intitulou a matéria: "San Tiago Aponta Caminhos". Haverá hoje caminhos melhores do que esses?

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