São Paulo, sábado, 8 de novembro de 1997
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Neto quer mudar imagem de Kerenski

PHIL REEVES
DO "THE INDEPENDENT", EM MOSCOU

O neto britânico de Alexander Kerenski acha que a história tem uma visão terrivelmente equivocada de seu avô. Enquanto os comunistas russos abriam suas bandeiras vermelhas ontem nas ruas geladas de Moscou, Stephen Kerenski estava em casa, na Inglaterra, estudando planos para redimir a reputação do político que os comunistas derrubaram e até hoje desprezam: seu avô, Alexander Kerenski.
Para Stephen, escritor e antiquário, não importa o fato de ter de superar décadas de propaganda soviética implacável, nem que sua visão se choca com a de respeitados historiadores ocidentais.
Ele diz que seu avô foi "um dos políticos mais vilipendiados da história", bode expiatório do Ocidente e da Rússia, em sua pressa para ocultar os erros que levaram à coletivização, à fome, ao terror de Stálin e à KGB. Assim, ele decidiu fazer a história mudar de idéia. Afinal, família é família.
A história de Alexander Kerenski é daquelas sagas marcadas pelo "e se...?" Se seu governo de coalizão tivesse se mantido no poder, teria Lênin (que, durante grande parte de 1917, viu com pessimismo as chances de uma revolução) subido ao poder? Teria Stálin espalhado o terror e massacrado milhões? Ou teria a Rússia se tornado uma democracia, com livre expressão e respeito aos direitos humanos?
Advogado democrata, Kerenski assumiu o governo provisório da Rússia em março de 1917 (fevereiro, pelo antigo calendário russo), quando a monarquia finalmente cedeu, sob o peso da convicção obstinada e estúpida de Nicolau 2º de que tinha o direito divino de exercer um reinado autocrático.
Depois de sua abdicação, Kerenski ajudou a convencer o irmão mais jovem do czar, o grão-duque Mikhail, de que haveria guerra civil se a monarquia continuasse.
Orador brilhante e -pelo menos de início- figura muito popular, Kerenski ficou no cargo até os bolcheviques tomarem o poder, em novembro, invadindo o Palácio de Inverno em São Petersburgo e prendendo os ministros. Contrariamente à idéia popular, não houve cerco heróico ao palácio, que estava virtualmente indefeso.
Kerenski, então com 36 anos, escapou num carro com a bandeira americana -proeza que fez o deleite dos propagandistas soviéticos, que enfatizaram o detalhe aviltante de que ele fugiu vestido de mulher. Essa alegação, segundo Stephen, é apenas uma das muitas calúnias infundadas sobre o avô. "Uma das principais alegações difamatórias é a que ele vivia como um czar no palácio, promovendo orgias e usando o Rolls-Royce do czar. Esse, na verdade, era o hobby de Lênin, não de Kerenski."
Ainda este mês, Stephen, 48, vai apresentar seus argumentos em São Petersburgo, no lançamento da primeira parte das memórias de sua avó, Olga, que foi morar no Reino Unido após a revolução. O trabalho será publicado pela revista "Zvezda" (Estrela), que adotou sua causa com entusiasmo.
"Acreditamos que Kerenski foi um homem notável", disse o editor-chefe da revista, Yakov Gordin. "Seu papel histórico foi distorcido pelos soviéticos, por razões políticas. Nossa tarefa será restaurar a imagem verdadeira."
Não será tarefa pequena. Historiadores importantes trataram Kerenski duramente, retratando-o como uma figura teatral, auto-indulgente, que surgiu como um dos primeiros heróis da revolução, chegando a tornar-se figura "cult" na "intelligentsia" democrática, mas acabou decepcionando pela sua indecisão política e vaidade.
Stephen não desanima. Ele conheceu seu avô, que morreu em Nova York em 1970, e o achava "espantosamente carismático". Mas a vida é repleta de causas perdidas, e a de Stephen parece uma delas, pois é extremamente difícil mudar o roteiro do passado.

Tradução de Clara Allain

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