São Paulo, sábado, 8 de novembro de 1997
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A segunda provação externa

CLAUDIO MONTEIRO CONSIDERA

O Real passa por sua segunda provação externa. Não será a última. Esse é um risco permanente para economias que não têm suficiente poupança interna e precisam lançar mão da do resto do mundo para financiar investimentos, além dos seus recursos próprios.
Nosso déficit em transações correntes é a forma de captar a poupança do resto do mundo. Superávit é próprio de países ricos, que têm capacidade para financiar o resto do mundo, ou ainda dos que, endividados no passado, perdem a confiança dos credores internacionais e, sem acesso ao mercado mundial, são obrigados a expatriar capital. Como o Brasil da década de 80.
A crise brasileira expressou-se inicialmente na queda de nossas Bolsas, ocasionada pelo recuo nas Bolsas dos "tigres asiáticos", decorrente, por sua vez, da crise de balanço de pagamentos pela qual esses países estão passando.
Obrigados a desvalorizar a moeda e reduzir seu ritmo de crescimento econômico, a rentabilidade de suas empresas -e portanto o seu valor patrimonial, expresso nas ações- reduziu-se.
A necessidade de liquidez, associada ao temor de que as ações estivessem supervalorizadas, acarretou uma crise de confiança que rapidamente tornou-se mundial. Até a Bolsa de Nova York sofreu queda, a despeito da excelente conjuntura da economia nos EUA.
Da Bolsa, a crise extravasou imediatamente para nossas relações externas, pois, diferentemente do passado, as ações das empresas brasileiras têm se constituído em excelente meio de captação da poupança internacional.
Diante da possibilidade de as ações continuarem perdendo valor, o capital internacional, assim como o nacional, sai da Bolsa e se protege comprando dólares, para eventual retirada do país em busca de aplicações mais rentáveis.
Com a maior compra de dólares, o risco de uma desvalorização, visando elevar o custo dessas aquisições, se eleva. Isso amplia o custo de adquirir dólar no futuro e incentiva uma maior procura por dólar no presente. A continuidade dessa "bola de neve" tem como limite o esgotamento das reservas mantidas pelo Banco Central do país.
Diante disso, o BC teria duas opções: tornar o dólar mais caro, desvalorizando o real, ou aumentar a rentabilidade de uma aplicação alternativa -no caso dos títulos públicos, aumentando os juros. No primeiro caso, os efeitos positivos seriam o barateamento das exportações e o encarecimento das importações, diminuindo nossas necessidades de financiamento internacionais.
A dúvida é: qual a desvalorização real necessária para criar a expectativa de que as necessidades de financiamento serão mesmo reduzidas? Mais: qual o montante de desvalorização nominal para obter a desvalorização real almejada, já que volta da inflação e corrosão da desvalorização nominal são certas?
Os efeitos negativos de tais medidas estão frescos em nossa memória. É até penoso repeti-los. A perdida década de 80 foi meticulosamente construída nessa base: desvalorização, inflação, estagnação e desemprego num vicioso movimento circular, com o consequente aumento de desigualdades e pobreza.
O Brasil optou por uma saída diferente: aumento da competitividade da nossa economia, por meio de uma maior produtividade, da redução do "custo Brasil" e da atração de investimentos e tecnologia estrangeiros.
Trata-se de uma decisão envolvendo riscos, que depende de muitas transformações estruturais e de reformas institucionais cujos prazos são incontroláveis dentro do processo democrático pleno em que, felizmente, vivemos.
Se desvalorizar está descartado e se as reformas não foram feitas, a situação emergencial teve o tratamento recomendável -alta dos juros. Efeitos negativos e amplitude dependerão do lapso de tempo pelo qual ela se prolongar.
Essa decisão exige um tempo, durante o qual o resto do mundo correrá o risco de financiar nossos gastos acima de nossos recursos. Isso só ocorrerá se o Brasil mostrar que esse financiamento se destina não ao consumo, mas à geração de investimentos em nova capacidade produtiva competitiva.
Isso exige a redefinição do papel do Estado. Ele deixa de ser produtor de mercadorias e interventor na economia; passa a ter o papel de regulador e produtor de serviços não-mercantis.
Com a privatização, torna-se possível abater a dívida do governo e reduzir seus gastos com as empresas estatais, notadamente as deficitárias. Além disso, é necessária a redefinição das novas obrigações das três esferas de governo.
É preciso, pois, proceder às reformas. Sem elas, a vulnerabilidade da economia brasileira continuará alta, com tendência a se elevar.
Estamos diante de uma escolha que se colocou em muitos outros momentos de nossa história: fazer as mudanças necessárias para melhorar o bem-estar do brasileiro ou retomar o velho processo de corrigir desequilíbrios reais com mudanças nominais em alguns preços sob controle do governo.
Na segunda metade da década de 70, escolhemos errado. Continuamos a fazê-lo durante toda a década de 80, com uma política isolacionista, cartorial e desincentivadora do progresso.
Podemos hoje mirar em perspectiva o que aquela escolha errada nos acarretou. Já avançamos muito: entenderam-se os aspectos desagregadores da inflação, do intervencionismo estatal e das restrições ao comércio internacional. Ficaram mais claras as relações entre as graves distorções econômicas e os problemas sociais, relegados a segundo plano nos últimos 35 anos.
É necessário aumentar o nível de escolaridade, para ter uma mão-de-obra mais qualificada e reduzir as desigualdades de renda. Também é preciso ampliar a assistência de saúde e a oferta de serviços de saneamento, extrema carência da população mais pobre.
Continuar avançando é uma escolha que depende unicamente de nós.

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