São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A 'netiqueta' do ciberespaço

A reciprocidade é a moral implícita das comunidades virtuais

PIERRE LÉVY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma comunidade virtual constrói-se sobre afinidades de interesses ou de conhecimentos, sobre a comunhão de projetos, num processo de cooperação e de troca -e isto independentemente das proximidades geográficas ou dos vínculos institucionais.
Precisemos, para os que não as praticaram, que, longe de ser frias, as relações on line não excluem as fortes emoções. Por outro lado, nem a responsabilidade individual nem a opinião pública e seu julgamento desaparecem no ciberespaço. Afinal, é raro a comunicação pelas redes informáticas substituir-se pura e simplesmente aos encontros físicos: a maioria das vezes, ela lhes acrescenta um complemento ou um pitada de sal.
Mesmo que o afluxo de novos usuários por vezes a dilua, os participantes das comunidades virtuais desenvolveram uma rígida moral social, um código de leis costumeiras -não escritas- que regem suas relações. Essa "netiqueta" diz respeito, sobretudo, à pertinência das informações. Não devemos depositar mensagens sobre certo assunto num tema de conferência eletrônica que trata de outro assunto. Recomenda-se consultar a memória da conferência eletrônica antes de se exprimir e, principalmente, não fazer perguntas à toa, se as respostas já se acham disponíveis nos arquivos da comunidade virtual.
A publicidade comercial não é apenas desaconselhada, mas, em geral, vivamente desencorajada nos foros eletrônicos. Vê-se que tais regras visam especialmente a fazer com que os outros não percam tempo. A moral implícita da comunidade virtual é, via de regra, a da reciprocidade. Se aprendemos, ao ler mensagens recebidas, devemos também enviar as informações de que dispomos, quando uma pergunta on line lhes faz referência. A recompensa (simbólica) vem, assim, da reputação de competência que forjamos para nós, a longo prazo, na "opinião pública" da comunidade virtual.
Os ataques pessoais ou as declarações grosseiras sobre esta ou aquela categoria de pessoas (nacionalidade, sexo, idade, profissão etc.) normalmente não são admitidos. Aqueles que se abandonam a isso, de maneira recorrente, são em geral excluídos pelos sistemas-administradores, a pedido dos animadores de conferências eletrônicas. À exceção destes casos particulares, a mais irrestrita liberdade de expressão é encorajada, sendo os internautas, de um modo geral, contrários a toda forma de censura.
A vida de uma comunidade virtual raramente decorre sem conflitos, que podem se exprimir de maneira um tanto brutal nos torneios oratórios entre membros ou nas "flames" (chamas), ao longo das quais muitos membros "incendeiam" aquele ou aqueles que infringiram as regras morais do grupo. Inversamente, as afinidades, as alianças intelectuais ou mesmo as amizades podem desenvolver-se em grupos de discussão, exatamente como entre pessoas que se encontram regularmente para conversar. Para os participantes, os outros membros das comunidades virtuais não são menos "humanos", pois seu estilo de redação, suas áreas de competência, suas eventuais tomadas de posição deixam evidentemente transparecer suas personalidades.
As manipulações e mentiras são sempre possíveis nas comunidades virtuais, mas, afinal, elas o são em todo lugar -na televisão, nos jornais impressos, no telefone, nas cartas, assim como em toda reunião "em carne e osso".
A maioria das comunidades virtuais organiza a expressão assinada de seus membros diante de leitores atentos e capazes de responder perante outros leitores atentos. Dessa maneira, como sugeri acima, longe de encorajar a irresponsabilidade ligada ao anonimato, as comunidades virtuais exploram novas formas de opinião pública. Sabe-se que o destino da opinião pública está intimamente ligado ao da democracia moderna.
A esfera do debate público surge na Europa no século 18, graças ao aparato técnico da imprensa e dos jornais. No século 20, o rádio (sobretudo nos anos 30 e 40) e a televisão (a partir dos anos 60) deslocaram, amplificaram e confiscaram, a um só tempo, o exercício da opinião pública. Não se pode ver, hoje, uma nova metamorfose, uma nova complicação da própria noção de "público", já que as comunidades virtuais do ciberespaço oferecem ao debate coletivo um campo de prática mais aberto, mais participativo, mais distribuído que o da mídia clássica? Quanto às relações "virtuais", elas não se substituem pura e simplesmente aos encontros físicos nem às viagens, antes as auxiliam na preparação. Em geral, é um erro pensar as relações entre os antigos e novos dispositivos de comunicação em termos de substituição...
O cinema não eliminou o teatro -deslocou-o. Depois da escrita, fala-se o mesmo tanto, mas de forma diversa. As cartas de amor não impedem que os amantes se beijem. As pessoas que mais falam ao telefone são as que mais encontram amigos. O desenvolvimento das comunidades virtuais acompanha a evolução geral dos contatos e das interações de todo tipo. A imagem de um "indivíduo isolado diante de sua tela" é muito mais um fantasma do que um resultado da pesquisa sociológica.
Na verdade, os usuários da Internet (estudantes, pesquisadores, universitários, comerciantes em viagem, trabalhadores intelectuais independentes etc.) viajam provavelmente muito mais do que a média da população. A própria queda do volume de passageiros dos aeroportos, verificada nos últimos anos, é resultado da Guerra do Golfo: a extensão do ciberespaço não teve nenhuma culpa. Ao contrário, como medida do século e do planeta, a comunicação e o transporte crescem no mesmo passo. Portanto não nos deixemos cair na armadilha das palavras. Uma comunidade virtual não é irreal, imaginária ou ilusória: trata-se unicamente de uma coletividade mais ou menos permanente, que se organiza por intermédio do novo correio eletrônico mundial.
Os amantes da cozinha mexicana, os loucos por gatos angorás, os fanáticos por certa linguagem de programação ou os intérpretes apaixonados de Heidegger, antes dispersos pelo planeta, muitas vezes isolados ou pelo menos sem contatos regulares entre si, dispõem agora de um lugar familiar de encontro e de troca. Pode-se dizer, portanto, que as chamadas "comunidades virtuais" conseguem uma verdadeira atualização (no sentido de pôr efetivamente em contato) de grupos humanos que eram somente potenciais antes do advento do ciberespaço. A expressão "comunidade atual" seria, no fundo, muito mais própria para descrever os fenômenos de comunicação coletiva no ciberespaço do que "comunidade virtual".
Com a cibercultura, exprime-se a aspiração à construção de um liame social, que não se fundaria nem em vínculos territoriais, nem em relações institucionais, nem em laços de poder, mas na reunião ao redor de centros de interesse comuns, no jogo, na comunhão do saber, no aprendizado cooperativo, nos processos abertos de colaboração. O apetite pelas comunidades virtuais depara-se com um ideal de relação humana desterritorializada, transversal, livre.

Tradução de José Marcos Macedo.

Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch
Próximo Texto: CONHEÇA OS AUTORES
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.