São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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Brasileira 'administra' 200 mil refugiados

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL AO SAARA OCIDENTAL

No centro do deserto do Saara, um lugar à margem da globalização e crashes financeiros, uma brasileira assiste há oito meses ao parto de uma nação. Enquanto isso, é responsável pelos 200 mil filhos desse país no exílio, os refugiados do Saara Ocidental.
Trata-se de Naila el-Shishiny, a oficial do UNHCR (sigla em inglês para Alto Comissariado para Refugiados da ONU) que cuida dos quatro campos que existem no território argelino cedido à Frente Polisario -grupo que há quase 23 anos tenta tornar independente aquele que já foi o Saara Espanhol.
"Não consigo ver essa gente lutar tanto e não ajudar nem um pouco. Foi assim no Haiti, onde também trabalhei", diz Naila, 50 anos e um tipo físico pouco diferente daquele das pessoas que ela ajuda -morena, cabelos negros e franzina (cerca de 1,60 m).
Biótipo que tem a ver com sua origem. Naila nasceu no Cairo em 1947 e 25 anos depois ganhou o mundo, às vezes como artista, outras como jornalista ou ainda trabalhando com a ONU.
Brasil
Depois de anos na Europa, Canadá, Colômbia, Peru e Bolívia, Naila desembarcou no Brasil em 1975 para trabalhar no escritório das Nações Unidas no Rio. Da cidade emprestou o sotaque de seu português perfeito, mas um pouco desgastado pela falta de uso.
"Eu me achei lá. Tanto que, em 1982, acabei me naturalizando brasileira", afirma Naila, economista por formação e leitora ávida dos poucos livros em português que possui -como a edição de "Um certo capitão Rodrigo", de Érico Veríssimo, que tinha na bolsa quando foi receber a Folha no aeroporto de Tindouf (1.500 km a sudoeste de Argel).
"Isso aqui é o fim do mundo", resumiu, no penúltimo domingo. E é. Tindouf é uma cidade de 15 mil habitantes que mais lembra uma base militar, com areia e terrenos áridos por todos os lados. A floresta mais próxima fica a 1.000 km.
Nesse fim de mundo os militantes da Frente Polisario receberam autonomia da Argélia para construir seus campos de refugiados quando o Marrocos invadiu o Saara Ocidental, em 1975.
Tarefas
A função de Naila, grosso modo, é percorrer todos os campos todos os dias e descobrir o que está acontecendo, como a comida está sendo distribuída e como estão as condições sanitárias.
Essas só não são piores porque os campos, com nomes emprestados das antigas cidades dos saaraouis (originários do Saara Ocidental) e num raio de 100 km de Tindouf, estão no meio do deserto. "Se isso fosse úmido, não teríamos metade dessa gente viva."
A bordo de seu jipe Nissan com ar-condicionado e o símbolo do UNHCR nas laterais e capô, Naila trabalha em média dez horas por dia a partir das 8h. "No verão, as condições são absurdamente piores", diz, ao ser questionada sobre o calor de 33 graus que fazia no caminho para a base do Polisario onde a reportagem foi hospedada.
Ela é conhecida em todos os bloqueios de estrada da região -e são quatro só do aeroporto até a base- e nos campos. "Adoramos essa mulher. Ela é muito boa com a gente", afirma Deda, o chefe da base onde a Folha ficou.
Comunicação
Ele e Naila se comunicam em espanhol e árabe, as duas línguas dos campos, devido à origem e à colonização. Ela ainda fala italiano, francês, português e inglês.
Naila assumiu seu posto em fevereiro, mas antes já havia passado 23 meses visitando a região pela Minurso (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental), ação frustrada que visava contar os eleitores para o referendo sobre o destino da região.
Por que voltar? "Vi que havia algo a fazer e também havia um motivo especial", afirma, referindo-se sem dar nome ao seu namorado, um macedônio da ONU que trabalha em Tindouf.
Ela não gosta de falar da vida pessoal. A discrição combina com a única maquiagem que usa, lápis azulado sob os olhos, e as roupas simples -camiseta, malha, calça jeans e chinelo com meias para poder entrar e sair melhor das tendas e casas muçulmanas (onde sempre se tira o sapato).
Cronograma
O algo por fazer a que ela se refere é grande. Oficialmente, são 165 mil pessoas nos campos, mas todos concordam que os números são ainda maiores.
A partir deste mês, segundo o cronograma acertado entre ONU, Polisario e Marrocos, com patrocínio dos EUA, todas essas pessoas terão de ser recontadas e repatriadas para o Saara Ocidental.
"Acreditamos que será possível resolver a situação", afirma o chefe de Naila, Lenard Henson, há 20 dias no escritório da ONU em Argel. Mas se alguma das partes mudar o acertado, uma tragédia humanitária anunciada vai ocorrer.
Com um orçamento anual de US$ 3,5 milhões para os campos, Naila apenas consegue administrar a situação. Tem uma funcionária. Sem ajuda de organizações não-governamentais, do Crescente Vermelho argelino e da União Européia, a ONU não poderia fazer nem o pouco que faz.
Naila ganha cerca de US$ 3.000 mensais. Mas o dinheiro não é o que mais interessa, diz ela, uma vez que uma visita anual a sua irmã que mora no Brasil custa quase três meses de trabalho.
"Agora que já estamos aqui, vamos até o fim."

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