São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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Nos campos, falta água e sobra mosca

IGOR GIELOW
DO ENVIADO ESPECIAL

A água, ou a falta dela, é o principal problema dos quatro campos de refugiados saaraouis em território argelino -uma região árida e com calor de até 60 graus no verão, fora as tempestades de areia.
Eles ficam em um raio de 100 km da cidade de Tindouf, último marco humano naquele canto do deserto do Saara. Levam os nomes das cidades ocupadas pelos marroquinos: El-Aioun (a capital), Smara, Ausset e Dajla.
A Folha visitou Smara (50 km de Tindouf) na penúltima segunda-feira, acompanhada pela oficial da ONU Naila el-Shishiny e por autoridades saaraouis. São cerca de 35 mil pessoas numa vasta área rochosa e plana, com alguns trechos de areia e morros.
"Estudamos para viver no nosso país", afirma Beni, 12 anos e aparência de 8 devido à má nutrição, durante uma aula de espanhol na escola local.
Espanhol é corrente nos campos devido à antiga colonização, mas as pessoas na faixa etária dos 35 anos não gostam de falar pela lembrança do domínio da Espanha franquista. Esses adotaram o francês como segunda língua.
Hassani, um dialeto árabe, e o árabe clássico, são as línguas maternas. Mas a constante integração entre estudantes saaraouis e outros países fazem o inglês, o alemão e até o sueco serem relativamente fáceis de encontrar.
Cólera e comida
Em Smara, toda a água é distribuída por cisternas abastecidas por caminhões-pipa que vêm de Tindouf, onde há uma fonte menos contaminada. No campo, a alta salinidade inviabilizou a perfuração de poços.
"Nos outro campos, o problema é a contaminação. O banheiro das pessoas e dos animais é a natureza. Agora, a ONU e a Oxfam (ONG britânica) estão preparando um novo sistema de poços para esses locais", afirmou Naila.
A contaminação gerou até uma epidemia de cólera com 40 suspeitas e 15 casos confirmados neste ano. Quatro pessoas morreram e a Argélia enviou equipes para limpar os poços e isolar os suspeitos, mas o governo saaraoui se nega a confirmar a história com medo de má repercussão para sua causa.
A comida é escassa. Cada família recebe rações mensais do que estiver disponível. Quando a reportagem esteve na região, os únicos pratos eram sopas com lentilhas do Echo (programa alimentar da União Européia), arroz da ONU e alguns ovos do governo argelino.
Desnutrição
Há um mês, a ONG italiana Cisp encerrou um trabalho de avaliação do perfil nutricional dos campos. "Fizemos o trabalho e vimos que 46% das pessoas estão desnutridas", afirma o oficial Cristiano Scramella, que mora em Rabuni.
E isso é visível em garotos como Beni, que a exemplo dos nossos desnutridos do Nordeste e periferias de capitais, não têm crescimento normal.
Bebe-se somente o chá verde, tradicional da região, que é feito dentro das casas. Ou tendas, uma vez que 60% do campo é composto por tendas de material perigosamente inflamável da ONU -o resto, de cubículos com tijolos feitos com o solo local com a água que raramente sobra.
Há poucos animais, a maioria cabras e dromedários. Esses são mais comuns em outros campos, disse Mohammed Ali Bachir, um dos raros homens na faixa dos 30 anos morando em Smara.
Cerca de 80% da população é composta por mulheres e crianças. Os homens estão no front hoje pacífico com o Marrocos ou em funções administrativas em Rabuni.
Moradia
Em cada tenda (ou casa), moram de cinco a dez pessoas, em um espaço de 16 metros quadrados. Não há nenhuma divisória e o fogareiro a gás geralmente é a única peça diferente dos tapetes.
E há moscas. Essas são muitas em toda a região, e as crianças ensinam o que fazer com elas. "Finja que você é um camelo (dromedários na região). Eles não se importam", conta Djani, 8 anos, dando a razão que coloca o tracoma (doença que ataca os olhos transmitida por moscas) em segundo lugar na lista de problemas de saúde pública de Smara.
Em primeiro estão as constantes infecções alimentares, segundo Mahreia Benabi, responsável pelo hospital de Smara. Lá não há casos graves, apenas fraturas, intoxicações e queimaduras.
Quando a Folha esteve no local, uma mulher estava prestes à dar à luz. "Se tudo der certo, essa criança vai morar em um lugar melhor", afirmou Mahreia.
(IG)

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