São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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Na mira do desconhecido

ADRIANA VIEIRA; MARIANA SGARIONI

Delegado e psiquiatra dizem que qualquer ameaça por mais absurda que pareça, deve ser levada a sério
"As alucinações auditivas são muito comuns nos perseguidores. São vozes que eles ouvem mandando perseguir ou até mesmo matar alguém."
(Carlos Eduardo Garcia, psiquiatra e diretor de perícia do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha)
"No início, não dei bola, porque ele dizia só coisas sem sentido. Depois, fiquei com muito medo, porque ele começou a descrever todos os lugares que eu frequentava: o meu laboratório, lojas, clube..."
(Maria de Fátima Mascarenhas Ribeiro, 36, bióloga e arqueira)
"Você é uma morta adormecida", você é aquela caveira derretida do disco do Iron Maiden", "Quando nos encontrarmos, você terá um final feliz"
(Trechos da carta que a locutora Roseli Costa, 33, recebeu de seu ameaçador)
POR ADRIANA VIEIRA E MARIANA SGARIONI
Quarta-feira, 22h55. O telefone toca na casa da bióloga Maria de Fátima Mascarenhas Ribeiro. Exausta, depois de um dia de trabalho, ela atende apreensiva. "Por que demorou para atender? Não sabe que eu vou te matar?", diz uma voz masculina.
Maria de Fátima desliga. Às 23h19, o telefone toca de novo. "Não adianta desligar, eu vou te matar." Ela bate o telefone. Exatos cinco minutos depois, o mesmo homem, agora com a voz mais enfurecida: "Vagabunda, pode preparar o seu próprio enterro".
Essa cena repetiu-se durante quase um ano na vida de Maria de Fátima, 36, perseguida por um homem com distúrbios mentais, o desempregado José Luiz. Em abril de 1995, eles se conheceram, no shopping Eldorado, durante uma demonstração de arco e flecha, esporte que a bióloga pratica nas horas vagas. José estava lá para aprender e ficou encantado com a professora, muito atenciosa e paciente.
Esse único encontro foi suficiente para transformar Maria de Fátima em alvo da obsessão de José Luiz. Além dos telefonemas incessantes nos horários mais absurdos, ele chegou a segui-la nas ruas.
"No início, não dei bola, porque ele dizia só coisas sem sentido. Pensei que fosse um louco qualquer. Depois, fiquei com muito medo, porque ele começou a descrever todos os lugares que eu frequentava: o meu laboratório, lojas, clube... Foi aí que decidi procurar a polícia", lembra.
Histórias de perseguição como essa, que parecem roteiro de filme de suspense, não têm nada de ficção para centenas de paulistanos. Alvos de fãs obcecados, ex-namorados inconformados, funcionários insatisfeitos ou simples desconhecidos, os "perseguidos" vêem, de um dia para o outro, suas vidas se transformarem em inferno.
Desprezando as ameaças no início, a maioria das vítimas termina, tolhida pelo medo, mudando hábitos, evitando alguns ambientes e desconfiando de amigos antigos e vizinhos: será que ele seria capaz de uma baixaria dessas?
"Em geral, os ameaçados conhecem ou já tiveram algum tipo de relação com seus perseguidores", afirma o delegado-titular Baldomero Girbal Cortada Neto, da 1ª Delegacia da Divisão de Proteção à Pessoa, criada há dois anos justamente para atender esse tipo de caso. Até hoje, foram registradas 285 denúncias na delegacia, ainda pouco conhecida pelos paulistanos.
Nos cálculos de Cortada Neto, o número de "perseguidos" deve ser muito maior. "Só quando a história já foi longe demais, as pessoas procuram a polícia", afirma o delegado.
A bióloga e arqueira Maria de Fátima encaixa-se nesse perfil. Ela aguentou as ameaças -diárias- por nove meses. José Luiz ligava, contava o que tinha feito durante o dia ("fui ao show da Simony", "encontrei minha avó") e chegou a se inscrever na federação de arco e flecha onde ela treinava.
Maria de Fátima não falava nada ao telefone, tentava não se preocupar. Até o dia que decidiu procurar a ajuda de um amigo policial.
A locutora de rádio Roseli Costa, 33, também aguentou o quanto pôde. Vítima de um ouvinte obcecado, só denunciou seu perseguidor depois de dois anos, quando ele começou a dar indícios de que pretendia matá-la.
"No começo, pensei que fosse só mais um fã, não tinha medo", conta Roseli, que frequentemente recebia cartas de Walter elogiando seu trabalho.
A perseguição foi se intensificando com telefonemas. Depois de um ano, ela atendeu a primeira ligação de Walter, que insistia em conhecê-la pessoalmente. "Sua voz era muito esquisita, parecia um velho, porque tinha uma respiração ofegante. Inventei uma desculpa qualquer para não encontrá-lo", conta.
Seis meses depois, Roseli ficou, sem saber, frente a frente com o seu perseguidor por 15 minutos. Num sábado à tarde, enquanto esperava alguém abrir a porta do prédio da rádio, viu um homem escondido atrás de uma mureta.
"De vez em quando, ele me olhava, mas não chegou a se aproximar. Naquele momento, nem passou pela minha cabeça que poderia ser ele."
O funcionário que desceu para abrir a porta para Roseli reconheceu Walter, que já tinha perseguido uma programadora da rádio dois anos antes -de tão incomodada, ela acabou pedindo demissão.
"Fiquei, então, realmente assustada. Chamaram a segurança do prédio, pediram seus documentos, mas não puderam fazer nada", conta Roseli.
Depois desse encontro, Walter enviou uma última carta, dessa vez assinada como "anjo Gabriel, o vingador", dizendo que Roseli estava possuída pelo demônio. Outros três funcionários da rádio também receberam cartas do anjo Gabriel, avisando-os sobre o "fim" da locutora.
As cartas foram apreendidas pela polícia, mas Roseli ainda lembra de trechos aterrorizantes: "Você é uma morta adormecida", "Você é aquela caveira derretida do disco do Iron Maiden", "Quando nos encontrarmos, você terá um final feliz".
"É importante levar sempre a sério qualquer tipo de ameaça, por mais absurda que possa parecer", aconselha o delegado Cortada Neto. Segundo ele, grande parte dos ameaçadores apresenta algum tipo de distúrbio mental.
Casos como o de Walter e José Luiz são chamados, em linguagem médica, de "psicoses paranóides". São transtornos delirantes, em que a pessoa passa a perseguir outra com a certeza de que a vítima o ama, é a mulher da sua vida, por exemplo.
"Esse tipo de psicótico, dependendo do grau, pode chegar a matar, porque não mede consequências dos seus atos, não sabe o que está fazendo", explica o psiquiatra Ricardo Moreno, coordenador do Grupo de Doenças Afetivas do Hospital das Clínicas da USP.
Além de se convencer, os "perseguidos" precisam convencer a polícia da gravidade do problema. Já com a carta ameaçadora na mão, Roseli procurou uma delegacia comum, mas não conseguiu registrar queixa porque "não tinha sofrido agressão física".
Maria de Fátima, perseguida por José Luiz, ouviu dele: "Sua otária, não adianta mandar a polícia atrás de mim. Você não sabe que ameaça não é crime?".
É crime sim e dá cadeia. O Código Penal prevê detenção de um a seis meses ou multa para quem intimidar por escrito, palavra, gesto ou qualquer outro meio simbólico. Se for perturbação da tranquilidade -ligar e desligar o telefone sem falar nada, por exemplo-, a pena varia de 15 dias a dois meses de cadeia ou multa.
"No Brasil, as penas são brandas, e a Justiça é muito lenta. Dificilmente, alguém vai para a cadeia por infernizar a vida do outro", diz o advogado criminalista Márcio Thomaz Bastos.
A dificuldade é provar que a perseguição visa causar um mal. Segundo o delegado Cortada Neto, quando o ameaçador é detido, a polícia tenta enquadrá-lo em algum outro delito. Ele pode, por exemplo, estar portando ilegalmente armas ou drogas, que são crimes graves e prevêem penas bem mais pesadas.
Nos Estados Unidos, as leis são mais rígidas nesses casos. Em 1994, o comerciante brasileiro Carlos Alberto Rosa do Vale foi condenado pela Justiça norte-americana a três anos de cadeia e a manter uma distância mínima de 100 metros da ex-namorada Juditiara Samouskoy. Ele era apaixonado por ela e a perseguia. Vale cumpriu 22 meses e foi deportado. Hoje, vive em Atibaia com a família.
No Brasil, não existe esse conceito de "stalking" (algo como "ficar à espreita") e, por isso, não dá para obrigar um papparazi a manter determinada distância de uma estrela -como fez Jacqueline Onassis com um fotógrafo que a perseguia-, nem impedir que uma ex-namorada lunática grude no seu pé.
O perseguidor da bióloga Maria de Fátima só foi recolhido a um hospital psiquiátrico porque contra ele já havia dois processos semelhantes tramitando na Justiça. Walter, o perseguidor de Roseli, não foi detido, mas sua família foi orientada a submetê-lo a um tratamento.
A consultora de moda S.D.F., 25, não teve tanta sorte. Seu perseguidor continua solto. Durante um ano, S.D.F. recebeu ligações anônimas de um homem, que "falava baixarias, respirava forte e gemia". "Parecia estar se masturbando", conta S.D.F, que tem medo de identificar-se e voltar a ser amolada.
Cansada e com medo, S.D.F. decidiu instalar um bina, equipamento para identificar o número de quem está ligando. Com o número do telefone e as gravações das ligações, a polícia identificou o tarado -um rapaz de 18 anos, morador do mesmo bairro. Ele não foi preso porque não tinha antecedentes criminais, mas parou de ligar depois da "prensa" da polícia.
A advogada Ana Cristina Souza Rocha, 46, diretora de uma empresa, também usa, há sete anos, um desses aparelhos no seu escritório. "Semanalmente, uma pessoa liga e não fala nada. Para mim, isso é uma das piores perseguições, porque realmente consegue me irritar", diz a advogada.
Ela já descobriu o número de oito pessoas que a perturbam: todos ex-funcionários. "Apenas liguei para alguns para tomar satisfação, mas não adiantou nada."
Há alguns anos, quando era diretora na empresa do pai, apareceu uma ambulância do Hospital Beneficiência Portuguesa no escritório para buscá-la, porque alguém ligou avisando que ela estava morrendo. Num outro dia, recebeu um bolo "muito grande" e sem motivo. "Fiquei com medo que estivesse envenenado e joguei fora", conta.
Depois desses dois episódios, a advogada contratou um investigador particular. "A situação estava tomando uma proporção muito grande. Ficava aflita porque pensava 'o que vou encontrar hoje?'."
A irritação e o medo, frutos das ameaças, podem causar estresse e ansiedade nas "caças". "A vítima se sente perseguida o tempo todo. Cerca-se de cuidados, não sai sozinha e amedronta-se facilmente", diz o psiquiatra Roberto Moreno.
Foi o que aconteceu com a ex-modelo e empresária Monique Evans, que recebeu durante meses cartas e telefonemas com ameaças de morte.
"Uma voz masculina fazia contagem regressiva: dizia que faltavam tantos dias para a minha morte, até chegar o dia em que faltavam algumas horas. Ele sabia todos os meus passos. Eu não conseguia mais me equilibrar, perdi o controle, a noção do que era real ou não", diz Monique.
Um dia, no caminho para o trabalho, viu um pôster seu, todo manchado de sangue. "A polícia analisou e era sangue mesmo", conta.
O resultado das investigações não contentou a empresária: a polícia concluiu que era a ex-namorada de um homem com o qual Monique teve um caso. "Eu não acreditei, tenho certeza que era um homem e talvez alguém rico, que conseguiu abafar o caso", diz.
Pessoas públicas geralmente são "presas" fáceis para desequilibrados. Durante sua atuação como a Liliana na novela "O Rei do Gado", da Rede Globo, a atriz Mariana Lima, 25, começou a receber ligações misteriosas.
Primeiro, uma mulher deixava recados maliciosos na sua secretária eletrônica. "Uma vez, atendi e ela disse que queria me encontrar na porta do meu prédio. Eu não desci, e as ligações pararam", conta.
Agora, ela é amolada por um fã, que, além de ligar constantemente, já chegou a enviar um livro para a sua casa -ela não sabe como ele conseguiu o endereço. "Não tenho medo, mas ele me perturba, porque me liga muitas vezes em horários inoportunos. Acho que isso é bem mais que uma relação fã-artista", afirma Mariana.
Antes de ficar famosa, já foi vítima de ameaças. Aos 18 anos, um homem a chateava por telefone e começou a segui-la. "Ele ligava e me dizia coisas como: 'Estive com você ontem em tal restaurante'. Eu evitava sair sozinha à noite e andava nas ruas sempre procurando por ele. É uma situação tão insólita, que você fica acuada com o próprio medo."
Depois de um desses telefonemas, em que ele disse ter sonhado que ela tinha se matado, Mariana chegou a ir dormir na casa da mãe. A chateação durou dois meses. Acabou quando a atriz viajou para Nova York, onde passou cerca de um ano, o que desanimou seu "caçador".
Para os perseguidos, a pior sensação é a de vulnerabilidade. Parece que a qualquer momento, você será atacado. E, numa sociedade cada vez mais interligada -por telefones, computadores etc.-, fica praticamente impossível se proteger.
"Em algumas horas, sentada no meu computador, começando apenas com seu nome e endereço, posso descobrir o que você faz da vida, nomes e idades do seu cônjuge e filhos, a marca do seu carro, o valor da sua casa e quanto de imposto predial você paga", disse em entrevista à revista "Time", Carole Lane, autora do livro "Naked in Cyberspace: How to Find Personal Information Online" ("Nu no Ciberespaço: Como Descobrir Dados Pessoais Online").
Embora menos informatizado que os EUA, o Brasil já possui policiais treinados para localizar hackers inoportunos. Um deles prendeu um analista de sistemas que ameaçava, via e-mail, a colunista da Folha Barbara Gancia. "O mais grave é que ele escreveu que me reconheceria e me pegaria na rua", conta. "Mas, depois pensei melhor. Ele dizia que agarraria o meu corpinho. Com certeza, ele nunca me viu na vida...".

ONDE ENCONTRAR 1ª Delegacia de Proteção à Pessoa (DHPP) r. Brigadeiro Tobias, 527, 3º andar, região central. Tel. 230-3418

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