São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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Por que, afinal, o Brasil de Regina Casé é tão 'legal'?

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

O "Brasil Legal" de Regina Casé é uma delícia. O programa é tão superior, tão mais sofisticado, inteligente e generoso do que tudo o que se costuma ver na TV que chega a parecer injusto criticá-lo. Tudo ali, a começar pela apresentadora, é "legal" demais. Isso, porém, começa a ser um problema quando se lembra que o país "real" é bem menos divertido que o Brasil de Casé.
Seria no entanto um equívoco dizer que "Brasil Legal" "esconde" o país. Talvez não haja na TV brasileira um programa tão revelador, tão sincero e espontâneo como esse. Diante dessa contradição, como ficamos? "Brasil Legal" não é um programa com pretensões jornalísticas -não se prende à lógica discursiva nem quer informar, denunciar, comentar ou analisar nada de forma objetiva. Sua extraordinária força iluminadora reside no ar descompromissado, na naturalidade, na linguagem lúdica e solta capaz de extrair momentos intensos de lirismo e poesia das situações mais banais e prosaicas. Ou, dito de outra forma, "Brasil Legal" leva para a TV o formato da crônica, da qual Rubem Braga, entre outros, era mestre.
Tentando caracterizar essa última num belo ensaio intitulado "A Vida ao Rés-do-Chão", o crítico Antonio Candido afirma a certa altura que ela, a crônica, "pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas, sobretudo porque quase sempre utiliza o humor. (...) A sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão". Seria difícil encontrar uma descrição mais feliz do "Brasil Legal".
Na última terça-feira, Casé dedicou o programa ao mundo do telefone. Fazendo-se passar por uma telefonista que recebe e transmite recados pelo Teletrim, ela foi puxando os fios de vidas concretas e de emoções singulares abafadas pelo ambiente hostil daquele serviço mecanizado, anônimo e impessoal.
Um recado como: "Nelsinho, parabéns. Tô levando cerveja e empadinha", ao ser transmitido por Casé, ganhou uma graça e uma doçura inesperados por trás do seu ridículo involuntário. O carinho da apresentadora ia contagiando e humanizando as situações mais corriqueiras e tolas.
Em outra passagem, Casé visitou uma cidadezinha no interior do Espírito Santo onde havia um único posto telefônico e onde algumas pessoas jamais tinham usado o aparelho para comunicar-se. Novamente, a atitude carinhosa da apresentadora com os entrevistados transformou o que seria um problema (a ausência de telefone) num exemplo de pureza superior.
E aqui chegamos ao que talvez seja o problema central desse grande programa: o fascínio diante de formas de vida que se reproduzem à margem da modernidade, em descompasso com o padrão dito civilizado. O risco disso é uma certa mistificação da miséria, uma estetização apologética da "vida na favela", como se elas não fossem o resultado e a expressão de uma brutal exclusão social. A injustiça, a carência material são de certa forma "amaciadas" pela alegria que parece jorrar espontaneamente de cada personagem abordado por Casé.
Mas, pensando melhor, talvez seja um erro condenar esse programa em nome de esquemas abstratos ou de um esquerdismo sociologizante. Fico então dividido entre duas atitudes: não sei se acredito mais na frieza do crítico, que tenta explicar racionalmente como é possível uma forma tão improvável de felicidade; ou, pelo contrário, se já interiorizei a frieza do burguês, que se diverte despreocupadamente à custa desse "povo simples" que faz o Brasil tão legal.

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