São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 1997
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Aqui se fez, aqui não se paga

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é por ser meu xará, não, mas tem de se bater palmas à iniciativa do Gustavo Franco (presidente do BC) de denunciar essa que é mais uma das aberrações da Terra Brasilis: universidade gratuita, mesmo pra quem pode pagar.
Deixar filhinho de papai frequentar uma faculdade sem cobrar nada, num país como o nosso, é mais ou menos a mesma coisa que ver um banqueiro engravatado assaltando um mendigo. Uma das máximas do jornalismo é que, para saber o que é ou não notícia, diz-se que quando um cachorro morde um homem não é nada -mas, quando um homem morde um cachorro, aí é notícia.
Pois estamos tão fora de parâmetros que há homem mordendo cachorro há décadas, e só dá manchete quando alguém vem defender o óbvio. Deixe eu me explicar.
Como dizia o nosso amigo Adam Smith, "there's no such thing as a free lunch" -ou seja, nada é de graça. A grana pra manter as faculdades do país vem de impostos, pagos (teoricamente) por todo mundo. Fazendo de conta que ninguém sonega impostos, temos que ricos e pobres pagam o que lhes cabe.
O problema é que os "boy" (já aprendi que em São Paulo não se usa plural) tem uma realidade dramaticamente diferente da de seus compatriotas com menos recursos. O garoto rico frequenta escolas particulares, lê bons livros, viaja, experimenta situações que seus recursos materiais lhe proporcionam (que grande parte dessas crianças fiquem prostradas em frente à TV o dia inteiro e depois terminem de queimar seus neurônios em viagens com grupos neurastênicos à "Djisnei Uould" é mais um desvio do modelo teórico, que deve ser temporariamente ignorado). O guri pobre, nem é preciso dizer, estuda em colégios sofríveis, com professores mal preparados e não só não tem dinheiro para os bons livros, filmes e viagens que aumentariam seus conhecimentos, como frequentemente tem de interromper seus estudos para ajudar no sustento da família.
Quando chegam esses dois pra entrar nas universidades mais concorridas -as públicas, que são "de graça" e, de graça, até injeção na testa- não precisa ser um Einstein pra saber quem vai ser aprovado nessa outra calamidade pública chamada vestibular. Pois então temos que, depois de anos de esforço, o pobre é forçado a entrar no mercado de trabalho -e, com seu salário, vem o imposto que vai sustentar o garoto rico se divertindo nas faculdades mantidas pelo erário, usando a vaga que foi tirada do pobre.
Aí está: o pobre se ferra para pagar os estudos dos ricos. É um assalto, a versão brasileira (ou seja, invertida) do Robin Hood. O mínimo que deveria ser feito é obrigar os que têm dinheiro a pagar por seu estudo, sem que ele dependa do Estado.
O dinheiro arrecadado por meio dessa mensalidade deveria ser investido pelo governo em programas de educação de base em escolas públicas, que é o que um país subdesenvolvido realmente precisa. O governo deveria estar fazendo força para que as crianças pobres recebessem uma educação digna, e não usando seus recursos para sustentar filhinho de papai.
Parabéns a Franco, o enfant térrible do governo, por sua iniciativa. Como não é político, pode dizer algumas verdades que muita gente não gosta de ouvir. E aos que estão incomodados com a proposta e querem continuar "mamando nas tetas do Estado", sugiro que se retirem. Recomendo uma faculdade por aqui.
Tá certo que não há essas diversões de viver num sistema em que homem morde cachorro, mas garanto que assunto não vai faltar. Os gringos adoram essas histórias de que no Brasil as melhores faculdades são de graça e só há rico, e os pobres que conseguem estudam nas pagas -e piores. Se soubessem que não é piada...

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