São Paulo, sábado, 15 de novembro de 1997
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"Ultimatum"

RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA

O antológico poeta português Fernando Pessoa, no momento futurista de um de seus heterônimos, Álvaro de Campos, faz, em versos, uma reflexão sobre erros de seu passado: "Na ilusão do espaço e do tempo, na falsidade do decorrer (...), só agora vejo o que deveria ter feito. O que só agora claramente vejo que deveria ter sido".
A sensação amarga do poeta é compartilhada por todos os brasileiros -especialmente os que tiveram nas mãos a responsabilidade de conduzir, em tempo hábil, a reforma constitucional-, neste momento em que um pacote de emergência, prenunciando um Ano Novo recessivo, expôs a fragilidade da economia nacional diante da globalização.
Sem uma estrutura tributária e fiscal consistente e moderna, capaz de tornar o mercado e o valor agregado da economia sustentáculos intangíveis de uma moeda estável, o décimo maior PIB do planeta -pasmem- fica totalmente exposto aos caprichos do capital especulativo internacional.
É preciso, muito mais do que criticar o pacote, entender o porquê de sua adoção. E esse exercício de consciência leva, inexoravelmente, à triste conclusão de que o país poderia passar incólume pelo movimento especulativo iniciado com a crise asiática se já tivesse concluída a bendita reforma tributária e fiscal.
O governo fez, num único final de semana, abruptamente -e, portanto, com grande impacto e reflexos negativos imediatos nos setores produtivos-, o que deveria ter sido realizado com mais planejamento e reflexão ao longo dos três anos do Real.
Obviamente, o remédio para combater um estado agudo é sempre muito mais acre do que a medicina preventiva. As ações de urgência carregam as imperfeições da pressa.
O mais constrangedor em toda essa questão é que a fragilidade da economia brasileira gerada pela ausência das reformas era a crônica de uma morte anunciada.
As cabeças mais lúcidas deste país, os empresários, os trabalhadores, economistas de diferentes tendências, entidades de classe e sindicatos têm repetido, à exaustão, o quanto as reformas são vitais para a manutenção da estabilidade da moeda e o início de um processo irreversível de crescimento sustentado.
Recente estudo da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) da Universidade de São Paulo, realizado para a Fiesp, demonstrou -com todas as letras, números e dados- que a não-realização das reformas fiscal, tributária e previdenciária reprime em 3,7% a expansão anual do PIB, que tem se situado em torno de 3%. A economia nacional poderia estar crescendo cerca de 7% a cada exercício, o que representaria mais empregos, investimentos e geração de riquezas.
Agora, além desse crescimento reprimido, o pacote fiscal, também decorrente da ausência das reformas, reduzirá ainda mais a expansão do PIB em 1998, que não deverá ultrapassar 2%.
Num rápido exercício matemático, pode-se dizer, portanto, que o simples fato de o Congresso não ter cumprido seu compromisso de reformar a Constituição está custando ao país 5% de crescimento por ano. Seria um frio número se não representasse uma dura e sumária sentença para os pais de família desempregados, as crianças carentes e abandonadas e todos os excluídos dos benefícios da economia.
Os erros devem levar à reflexão. Cometê-los é uma prerrogativa humana. Repeti-los é a maior insensatez. Por isso, a sociedade brasileira não pode mais aceitar a omissão com que o Congresso tem tratado a reforma e a passividade com que esse equívoco tem sido tolerado inclusive pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que teve o grande mérito de vencer a inflação e de conduzir o processo político com a sabedoria do entendimento.
É hora, porém, de utilizar o cacife político de uma autoridade respeitada e conhecida por esmagadora vitória eleitoral para, democraticamente, suscitar a agilização das reformas.
Vale aqui lembrar novamente Fernando Pessoa, que, no polêmico "Ultimatum", assinado por Álvaro de Campos, dizia sobre o seu continente: "A Europa quer grandes poetas, quer grandes estadistas (...). Quer o político que construa conscientemente os destinos do seu povo". Reformas já!

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