São Paulo, sábado, 15 de novembro de 1997![]() |
![]() |
Próximo Texto |
Índice
Deleuze renasce no virtual
MARCELO REZENDE
Comemora-se o lançamento da "Web Deleuze", que oferece -pela rede mundial de computadores- transcrições (em espanhol, inglês e, naturalmente, francês) dos cursos dados pelo pensador na Universidade Paris 8 e Vincennes-St.Denis, entre 1971 e 1987. A convocação é feita por Richard Pinhas (ex-aluno e amigo), o principal articulador de um projeto iniciado um ano depois que Deleuze se atirou da janela de sua casa. Tinha, então, 70 anos, e sofria de uma grave doença respiratória. "Tudo teve início um ano depois da morte de Gilles", disse Pinhas à Folha, por telefone, de Paris. Quando fala sobre Deleuze, usa sempre o primeiro nome. Para ele, trata-se do companheiro Gilles. "Ao lado de três amigos, pedi a Fanny, viúva de Gilles, que me cedesse as fitas dos 60 cursos ministrados. São 500 horas de gravação, em que se pode acompanhar o desenvolvimento de muitos de seus livros, ou a expansão de suas idéias. Havia o acordo inicial com uma editora, a Minuit. Não foi concretizado. Então, a Internet. Colocamos no ar em abril. No início de outubro já tínhamos um bom material." As fitas usadas por Pinhas pertencem à Biblioteca Nacional da França, uma doação de Fanny Deleuze. Mas, até outubro do próximo ano, os textos estarão integralmente na rede. Hoje, já podem ser acessados os cursos sobre a filosofia de Espinosa e Leibniz; quatro lições sobre Kant, uma palestra inédita sobre música (Deleuze reflete sobre o compositor Pierre Boulez) e, ainda, as obras "O Anti-Édipo" e "Mil Platôs" explicadas em aula entre 1971 e 1979. A França, diz Pinhas, recebeu com espanto e curiosidade um Deleuze virtual. Entre os companheiros de geração do filósofo, faz um comentário sobre Jacques Derrida: "Derrida não pensa o virtual. Você acha que ele era um amigo de Deleuze? Eu conheço os verdadeiros amigos de Deleuze, e não conheço Derrida". Um grande aventureiro que recusava a posição e a distância clássica entre o mestre e seus ouvintes. Para muitos que frequentaram suas aulas, a denominação aluno é "um termo impróprio", conta o professor e tradutor Peter Pál Pelbart, que frequentou Deleuze em St.Denis, entre 1980 e 1982. "Posso me lembrar de uma verdadeira aventura do pensamento, em que não havia apenas os interessados em filosofia, mas cineastas, pintores, matemáticos e literatos, que terminavam por dar uma qualidade diferenciada aos cursos." Deleuze, após entrar na sala, pedia que as pessoas colocassem as carteiras ao seu lado, em círculo: "Havia um colorido", recorda Pelbart, "e as pessoas se amontoavam ao redor dele. Havia, então, os japoneses e seus gravadores". Fitas e estrangeiros estão também na lembrança do professor italiano Giorgio Passerone, tradutor de Deleuze em seu país, que escreveu em uma revista francesa sobre a última aula, que aconteceu em junho de 1987, ano em que Deleuze abandonou o magistério. "Havia até mesmo câmeras para filmar o acontecimento. E curiosos, fantasmas, além da habitual etnia com inclinações nômades -os brasileiros, os africanos, os EUA, e os chilenos, japoneses, árabes e os italianos, o indiano e a russa (...) Todos lá para escutar a réplica de Deleuze, pois, como se sabe, um acontecimento é a coisa mais delicada do mundo, que não dá para ser filmada assim." Outro que se recorda das aulas é Roberto Machado, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que frequentou os cursos em dois momentos. De 1973 a 1980 e entre 1985 e 1986: "Deleuze nunca trazia um texto pronto. Ele fazia um maravilhoso esquema de aula, em uma folha escrita à mão, cheia de setas apontando em várias direções. Confeccionava seu pensamento durante a própria aula". Tratava-se, sobretudo, diz Pál Pelbart, de "uma liberdade de criar a filosofia, que para ele era uma caixa de ferramentas: cada um podia pegar o que precisava". Pelbart realizou a tradução para o português de várias obras de Deleuze. A mais recente, "Crítica e Clínica" (ed. 34), acaba de ser lançada no Brasil. No livro, o pensador escreve sobre os escritores D.H. Lawrence, Lewis Carrol e o francês Alfred Jarry, entre outros. Mais uma obra, agora tendo o filósofo como tema, é "'Deleuze - Clamor do Ser" (Jorge Zahar Editor), de Alain Badiou. Badiou, romancista e professor de filosofia na Universidade de Paris 8, escreve sobre "uma história estranha, a da minha não-relação com Gilles Deleuze. Ele era mais velho do que eu, por outras razões que não a idade". Para o próximo ano, a Editora 34 promete o lançamento de "Empirismo e Subjetividade", de 1953, e "O Bergsonismo", livro originalmente lançado em 1966. A Editora Escuta editará, em 98, "Dialogues", de 1977. Mas a principal atração virá mais uma vez da França e de Richard Pinhas. Em 1972, Pinhas -que também é músico- se reuniu com Deleuze em um estúdio para a gravação de "Le Voyager", em que "Gilles recita textos de Nietzsche para um fundo criado por mim". O retorno de "Le Voyager" acontecerá em CD no próximo ano. Um produto que provavelmente expandirá a existente atração da música eletrônica pelos escritos deleuzianos. Dois outros discos que tomaram sua obra por inspiração já chegaram ao mercado: "Folds and Rhizomes for Gilles Deleuze" e "In Memoriam Gilles Deleuze" (ambos pela gravadora Sub Rosa). Para Pinhas, o fenômeno se explica porque "Deleuze importa para todos aqueles que pensam a arte", acrescentando que parte de uma profecia do filósofo Michel Foucault se materializa: "Foucault escreveu: 'Talvez um dia o século seja deleuziano'. Eu não tenho qualquer dúvida sobre isso. Você ainda tem?". O endereço do "Web Deleuze" é http://www. imaginet.fr/deleuze Próximo Texto: 'Fugir é traçar uma linha' Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |