São Paulo, sábado, 15 de novembro de 1997
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Ventriloquia e opinião pública

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

"Sangue, fadiga, suor e lágrimas" foi o que Winston Spencer Churchill ofereceu ao povo inglês, em 1940, quando assumiu a chefia de governo sob a ameaça de uma catástrofe militar diante do avanço nazista.
Qual seria o seu índice de popularidade depois do famoso discurso no Parlamento naqueles dias terríveis? E, se as primeiras pesquisas fossem negativas, seu carisma conseguiria reverter a magia dos números? Nesse caso, uma simples amostragem de esquina, num "pub", poderia minar a capacidade de resistência dos britânicos e reverter o resultado da guerra.
Sete anos antes, março de 1933, Franklin Delano Roosevelt declarou ao ser empossado no primeiro dos três mandatos: "A única coisa da qual devemos ter medo é o medo". Se Gallup já estivesse em campo apontando para uma maioria céptica, Roosevelt conseguiria vencer a crise bancária? Teria força para obter poderes e tratar os especuladores como inimigos da nação?
Seja pela modorra causada pelo El Niño, seja por complacência com o rigor jornalístico, a verdade é que nossos jornais entregaram-se ao pseudodeterminismo "pesquisótico": obsessão pelas sondagens de opinião pública. Estão erigindo o leitor desinformado em árbitro de nosso destino e fonte daquilo que o leitor mais exigente espera dos jornalistas: matéria informativa, elaborada, investigada além das aparências, com um mínimo de imparcialidade, para montar os seus próprios juízos.
A pesquisa-blitz, de algibeira, é um "paredón" inapelável. O perdedor está ferrado, não poder arguir números, sempre infalíveis. Exemplo clássico do factóide, o pseudofato paramentado de numerologia e estatística, que os jornais despejam em cima do cidadão convertido em mero consumidor e retorna como fato consumado, por força da reiteração e repercussões.
Exemplar, verdadeiro "case-study" clássico da malversação dos estudos de opinião pública, foi a sondagem (esse é o nome correto) publicada com estardalhaço por esta Folha na última quarta-feira. O conjunto de medidas fiscais foi apresentado pelo governo na manhã de segunda-feira. Na edição de terça, a enfática manchete, na melhor tradição de jornalismo crítico, foi "Pacote tenta salvar Real", passando ao leitorado um evidente clima de derrota.
Durante algumas horas daquela manhã e do princípio da tarde, foram ouvidas 640 pessoas na cidade de São Paulo, que sentenciaram em nome de toda a cidadania brasileira: o pacote não serve, FHC não é bom, o bom é Maluf.
Não se atenderam aos mais comezinhos princípios "pesquisóticos" (aliás exigido por lei): revelar a metodologia que permitiu a escolha desses superbrasileiros que podem falar pelos outros. Só no dia seguinte (quinta), sem ao menos o protocolar "desculpe a nossa falha", foram enfim publicados os critérios que poderiam relativizar o que um dia antes fora apresentado de forma tão categórica e absoluta: a eleição desses megaeleitores foi feita por sorteio. Aleatoriamente!
Os rumos da economia e do país foram decididos como num bingo, numa roleta. De araque. Como fazem as emissoras do Disque 0900 que esta mesma Folha tem sabido castigar.
Ficamos também sem saber o teor das perguntas feitas a esses 640 sábios que, em menos de 24 horas, conseguiram digerir a meia de centena de atos oficiais que os expertos, até o dia seguinte, confessavam não ter avaliado e os parlamentares ditos aliados jamais avaliarão (pingentes que são de bonde alheio).
Antes que o inevitável patrulhamento me pespegue um bico de tucano, informo que venho travando essa cruzada contra a "pesquisomania" há mais de um ano em quase todas as edições do "Observatório da Imprensa" (www2.uol.com.br/observatorio) a propósito de todos os temas, sobretudo o painel de leitores da pág. 1-3, desta Folha, infeliz fórmula de autolegitimação de quem parece não acreditar no que faz.
A birra com a entronização das sondagens como substitutas da investigação jornalística tem raízes ideológicas. Nada a ver com a pessoa de George Gallup Sr., jornalista e professor da escola de jornalismo da Universidade de Columbia, que tentou sistematizar em 1936 as experiências de "polling" do "Farm Journal" e do "Literaty Digest" de 1912 e 1916.
A sacralização do conceito de que a opinião fragmentada das partes constitui a opinião do todo começou nos EUA pós-Watergate quando intelectuais conservadores, irritados com a derrubada de Nixon empreendida pela imprensa liberal, criou a revista "Public Opinion" para valorizar a "maioria silenciosa" por meio desse voto pretensamente qualificado.
É uma jogada patética da direita para promover a democracia direta, seletiva e instantânea em oposição ao conceito secular de democracia representativa, regular e universal. Culto transversal da "vox populi", é um truncamento semântico por meio do qual os aristocratas que desprezam o "vulgus" o manipulam descaradamente em favor de seus interesses.
Entende-se assim a perigosa valorização dos marqueteiros políticos, praga que assola igualmente a direita, centro, esquerda e apequena o debate político-eleitoral numa sucessão de malabarismos "pesquisóticos" e psicóticos.
Numa intervenção pela rádio Eldorado (São Paulo), quinta-feira pela manhã, o jornalista e consultor Stephen Kanitz convocou todos os partidos a um mutirão nacional pelo boicote aos produtos importados. Que inclui o turismo no exterior.
Calcula ele que, com três meses de veto a tudo o que representa saída de divisas, pode-se evitar a retração e o desemprego. E, sobretudo, sinalizar para os agentes financeiros internacionais uma agregação nacional em torno da moeda. O mais insignificante presentinho de Natal "made in Hong Kong" que se deixa de comprar pode representar mais um emprego no Brasil.
Em vez de reforçar as tiradas gordurosas de Delfim Netto, eu gostaria de ouvir a estentórica e irresistível Maria da Conceição Tavares puxando o cordão de um boicote aos importados de qualquer tipo. Nossos diplomatas talvez não gostem, por causa das implicações políticas, alguns barões da mídia podem torcer o nariz diante desta mobilização da cidadania que passa ao largo do seu cesarismo.
Mas essa é a vontade popular multiplicada, sem intermediações estatísticas, na mesma linha daquela que uniu o Brasil em 1942, quando entramos na guerra antifascista ou, em 1983-84, quando a nação irmanou-se na luta pelas diretas.
Diferentemente da sondagem, facilmente manipulável e manipuladora, nossos jornalões precisam voltar às origens, pensar no leitor-cidadão, mobilizar sua capacidade de intervir. Esquecida, ano passado, quando a mídia paulistana condenou por antecipação o primeiro rodízio de carros e, depois, teve de engoli-lo pela vontade da comunidade.
Esquecida novamente há poucas semanas, quando a mesma mídia deixou que os vereadores, a serviço dos lobbies de ônibus e táxis, condenassem a expansão dos serviços de lotações e vans, prejudicando diretamente engenhosa alternativa criada por pequenos empresários.
O povo quer ajudar, participar. Esta é a "vox populi, vox dei" -o resto é ventriloquia. Engodo.

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