São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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Um trágico contemporâneo

KATHRIN H. ROSENFIELD
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma bela capa, um bom título, uma boa história. Que mais pode pedir um leitor? O rótulo publicitário de "A Casa do Poeta Trágico" (de Carlos Heitor Cony) oferece uma "paixão incendiária que conduz os amantes a um passo da destruição", o que não capta bem o núcleo deste romance, que, estrito senso, é uma novela, um conto, porque não tem expansão épica, mas gira em torno de um sentimento, de um abalo, mantido ao longo da narrativa. O personagem principal, publicitário de meia-idade, seria o primeiro a observar o estereótipo do truque da divulgação. Não que não haja destas coisas cinematográficas no livro; há, seja dito de passagem, coisas para todos os gostos, mas essas coisas (que garantirão o sucesso de vendas) não são o essencial. Sob as aparências de mais um livro de sucesso, tem uma boa história, com aura e segredo.
O essencial nesta história é uma certa tonalidade da sensação, uma atmosfera ao mesmo tempo excitante e sufocante que nada tem a ver com o perigo de uma destruição acidental. Ela diz respeito à morte não apenas como evento real, mas como idéia. E, nesta duplicidade, ela não nos permite o luxo de observá-la "da beira" -a não ser que nós aceitemos servilmente sua aproximação.
É precisamente esta humilde submissão humana que o personagem principal não aceita ao lançar um desafio no qual se revela a insuspeitada coragem do reles publicitário. Ele transpõe para a vida o segredo de sua profissão e burla a percepção das evidências do tempo e a idéia da morte. E no momento em que a evidência volta a se impor brutalmente, ele admite -com um gesto assombroso- o fracasso da burla e faz, ele mesmo, o passo para além da beira. É na própria audácia de um mortal que insiste em ignorar o cão do Hades, em vez de temê-lo, que surgirá o limite e o fracasso inevitável da condição humana. A imagem do "cave canem", cuidado com o cão, sublinha esta temática trágica (além de uma série de explicações culturais, históricas e arqueológicas cuja insistência fere um pouco a elegância implícita e discreta do tema principal).
O nó trágico começa a se tramar no encontro de um homem maduro com uma adolescente naquela zona limítrofe entre a infância e a idade adulta, meninice do limbo vago onde tudo parece possível e impossível. Coloca-se a questão: o que é uma -esta- menina? Mulher ou criança? Fêmea ou neutro? Os romancistas maduros amam estes seres híbridos como os poetas e os sábios amam os gatos. Do charme onírico de Mignon de Goethe e da insolente indiferença da Albertine de Barbey d'Aurevilly (cujo gesto Proust sequestra para a Albertine do seu romance) emana o fascínio de lembranças que nunca conseguiremos reaver por completo -elas apenas retornam como o cheiro de um perfume, intenso, porém fugaz.
O que atrai nestes seres tão andróginos quanto femininos não é o sexo, mas a vitalidade opaca do broto, já todo pronto, mas não ainda aberto, velada imagem da vida perene e inviolável que paira na aura da sua suave e poderosa expansão. A imperturbável indiferença deste lento, mas contínuo movimento em direção a... quê? -ao todo? ao nada? ou a ambos, não importa- desembocará na beleza daquelas delicadas tulipas brancas que florescem, imperturbadas pelo lixo e a podridão, num beco de um terreno baldio. Na indiferença do broto, o olhar do transeunte, preso em planos e projetos, nas maquinações e truques da vontade "livre", pode repentinamente compreender a serena, magnânima e solene necessidade: o inevitável que desconhece causas, cálculos e raciocínios.
O fascínio deste misto de pletora e vazio, de promessa e de frustração, que aparece no limbo da meninice plasmou-se, milênios atrás, num hino homérico. Hades, o deus da morte, dono do pó e das sombras, avesso a qualquer valor ou beleza vivos, perde sua hirta indolência apenas diante do fascínio desta vida-por-vir que parece desafiá-lo, a não ser que ele se a associe. O sombrio dono do inferno rapta, então, a doce Perséfona, mas um leve giro do poema revela que ser caça não impede ser também caçadora. De alguma forma inexplicável e nebulosa, a doce menina aparece como a dona do jogo, soberana cortejada pelo poderoso marido, menina enigmática e silenciosa que escolheu o Hades como seu lar e retorna ao mundo luminoso apenas como concessão à dor da sua mãe, Demeter.
Em "A Casa do Poeta Trágico", Augusto Richet tem a pretensão de fazer-se dono do pó e das sombras com um lance semelhante. Ele acorda da homogênea náusea da sua vida de enfadonhos sucessos profissionais e insucessos pessoais, incomodado pelo compacto vazio entrevisto no olhar de uma menina. As circunstâncias que levam finalmente ao rapto desta menina criam uma situação atual que reproduz a estranha atmosfera -simultaneamente impossível e longinquamente verossímil- que concilia o clima do estrambólico crime com o da normalidade das coisas e das relações do convívio doméstico.
A menina e o homem maduro parecem conferir um ao outro a segurança certeira e inconsciente dos sonâmbulos. Eles agem sem pensar, o que confere aos seus atos e sucessos certa agradável irrelevância. Mas, por mais que as coisas se normalizem, a técnica narrativa, que antecipa o prenúncio de um final terrível, jamais deixa desaparecer a aura da morte. A latente-e-expansiva vitalidade juvenil acentua este horizonte, tornando-o progressivamente sensível para o homem, humano e mortal, que vive sob a máscara do poderoso dono das sombras propagandísticas. E, neste processo, a menina submissa-dominadora, que paira, serena, no inesgotável porvir que dela emana e que ela é, adquire realmente a misteriosa aura de certas figuras que ganham em beleza porque somos impedidos de vê-las por completo. Envolta num véu atemporal, como o afresco de Pompéia na capa, ela permanece visível e invisível. Parece que a vemos assim, como a imagem da capa: de costas, as ancas amplas, mas longilíneas, e uma leveza rítmica parece elevar este corpo como se fosse uma bacante que pertence a um mundo muito mais rico e fundo que o do sexo "normal" e o do amor real.
Há, apesar do make-up de sucesso, um sopro destas encruzilhadas onde vida e morte se tocam, onde pedra e carne se metamorfoseiam um no outro, onde sexo e amor são somente detalhes de outras e maiores fusões. Em muitos momentos, é convincente a determinação simultaneamente admirável e temível com que os dois personagens forçam as portas normalmente fechadas para estas regiões.
Por isto, e apenas por isto, certas (poucas) sequências de sexo explícito -demasiadamente realistas e convencionais- soam como falsas notas. Não que a feérica Mona não devesse apaziguar sua sede durante um blecaute, "trepando" na escadaria magnífica do Hotel Imperial. Ninguém duvida deste tipo de audácia, mas a construção da personagem -secreta, silenciosa, certeira como a heroína de Barbey, cuja mão é mais rápida do que as garras do tigre- não permite realmente que ela seja presa numa situação escandalosa, simplesmente porque a luz volta antes que ela tenha tempo de desaparecer.
O explícito contradiz também a meta, o estilo, o tom dos dois personagens principais. Eles têm a perspicácia seca e o faro certeiro do nobre cão de caça, parecem avessos a prolixas explicações e aos refrãos de "posses" e "cios" carnais demais para sustentar a intensidade do sentimento enigmático, rompendo a força das tramas delicadas, elásticas e invisíveis das coisas crepusculares. Isto termina enfraquecendo em certos momentos a aura de indefinível, porém inquestionável, força deste casal. Assim, a única cena em que o vigor entrevisto começa a aparecer como abstrato, esquemático e meramente ficcional é precisamente aquela que procura mostrar claramente as proporções exatas de um apetite erótico que, em outras partes menos concretas, parece ser apenas a porta de entrada para a aventura de burlar o tempo e a morte.
O autor aperta, às vezes, os botões da cultura e da erudição. Destila informações sobre as lendárias Francescas e Monas, sobre Dante e Leonardo, e satisfaz nossa avidez pela cultura geral que se alegra reencontrando os ecos da "Gradiva" de Jensen, salva do (merecido) esquecimento graças aos comentários de Freud, além de outras guloseimas, que são mais do gênero da psicologia explicativa.
Embora não diminuam a qualidade da narrativa, estes detalhes não acrescentam nada à aura e à essência do livro. Quem não sentiu os enigmáticos meios-tons aquém e além daquilo que chamamos banalmente de amor e desejo, não compreenderá tampouco o sentido destas informações. Basta a atmosfera que o autor soube dar a esta história, e esta é suficientemente forte e convincente para agir sobre as tripas do leitor, para não precisar explicá-la para o cérebro. A repetição, por exemplo, na cena final, do jogo que faz da caçadora a caça e do caçado o caçador é um fecho muito bem-sucedido, dando-nos a medida da audácia sóbria -suspensa entre o demoníaco e o angelical- com que os jogadores reconhecem a gravidade das regras e o limite do seu jogo.

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