São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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Uma arte da medida

LUIZ F. FRANKLIN DE MATOS

O teatro sempre constituiu uma preocupação permanente para os "philosophes" do século 18. Voltaire, por exemplo, pretendeu ocupar o lugar de Racine e tornou-se o mais celebrado poeta trágico do tempo. Diderot não foi tão bem-sucedido como dramaturgo, mas seus escritos sobre o espetáculo teatral legitimaram o drama, deixando marcas em Beaumarchais, em Lessing e no teatro romântico.
No caso de Jean-Jacques Rousseau, o teatro talvez seja ainda mais decisivo. Como afirma Luiz Roberto Salinas no "Paradoxo do Espetáculo", é o lugar por onde passou, um dia, o desejo de glória do genebrino recém-chegado a Paris, que logo se pôs a escrever comédias e óperas; é o objeto de severa e inquietante reflexão na "Carta a d'Alembert sobre os Espetáculos", uma das mais terríveis peças de acusação jamais escritas contra o teatro; é a metáfora obsecante que está em toda parte: no rigor do moralista, na severidade do pedagogo, nas novidades do pensador político. Em suma, o teatro é o "paradigma essencial" que organiza o "sistema" rousseauniano em sua totalidade.
Daí a importância de se voltar à "Carta a d'Alembert", livro no qual Rousseau trata exaustivamente do espetáculo teatral e que, não por acaso, assinala sua ruptura com os "philosophes". Como se sabe, a "Carta" lida com uma questão concreta: a proposta de introdução do teatro em Genebra, feita por d'Alembert no sexto volume da "Encyclopédie". Conforme diz Rousseau no prefácio, "já não se trata aqui de um vão palavrório de filosofia, mas de uma verdade prática importante para um povo inteiro" (1). Entretanto, para se entender de que modo a "Carta" resolve a dificuldade, para dar conta da complexidade de sua postura em relação à encenação teatral, é preciso examinar a crítica do filósofo à representação política e, ainda, à representação em geral.
Em poucas linhas, eis o essencial deste texto de Salinas. O "Paradoxo" começa, assim, pelo exame da crítica rousseauniana da representação. Esta crítica, adverte Salinas, pretende assinalar os "limites" de todo discurso, para além dos quais emergem "o entendimento que delira" e "a paixão que crê raciocinar". Como já se pode ver, tal procedimento não se restringe ao registro puramente intelectual, mas empenha o homem na sua totalidade. E, com efeito, a origem da representação -que supõe cisão entre o sujeito que representa e o objeto representado- deve ser buscada na passagem da natureza para a vida social.
Segundo o "Discurso sobre a Origem da Desigualdade", a natureza é fusão, o que está aquém de qualquer representação, discurso ou espetáculo -numa palavra, o absoluto-, enquanto a vida social é o domínio do relativo e só existe como representação, espetáculo e discurso. Por isso, Rousseau poderá dizer que a paixão dominante do homem natural é um sentimento absoluto, o amor-de-si-mesmo, ao passo que a grande paixão do homem social é um sentimento relativo, o amor-próprio, que supõe a razão, a língua, o outro. E daí ainda o mal por excelência, a duplicidade do homem existente, sua cisão entre "ser e parecer", cuja causa é a queda da finitude, isto é, na vida em sociedade.
Entretanto, como sabem os leitores de Rousseau, o mal não é irremediável. Em primeiro lugar, esta passagem, tal como se deu, não tem nada de necessário, o que abre a possibilidade para uma reforma do mundo existente; em seguida, se a passagem implica perda da plenitude original, ela também pode significar um ganho inestimável: a possibilidade de apreender a natureza como Ordem.
Certamente, a apreensão jamais será absoluta, visto que o absoluto, por definição, não é representável (Salinas insiste que a idéia de Natureza, para Rousseau, como a de Deus para Kant, é sobretudo uma idéia reguladora, que orienta nossas observações, e à qual nossa finitude nunca poderá dar um conteúdo efetivo). Além disso, nem toda representação será capaz de tal apreensão, pois esta dependerá do grau de proximidade de cada uma em relação à natureza. Segundo Salinas, neste momento Rousseau opera com a idéia de escala (2) e procura medir, por seu intermédio, os graus de afastamento e proximidade de cada forma expressiva em relação à idéia reguladora. O resultado é que a máxima aproximação estará no discurso "autêntico" -"um circunlóquio, um rodeio em torno da obscura origem", cujo modelo ideal é a música- e o afastamento máximo, no discurso "perverso", que consiste em fazer da própria representação o valor supremo, substituindo a ordem dos valores naturais por uma ordem postiça e artificial. Esta figura extrema é a "mathesis".
Eis aí, conforme Salinas, uma das maiores novidades da obra de Rousseau: a escolha da música como paradigma essencial. Eis aí também a explicação da singularidade e do paradoxo deste homem de letras "que faz do silêncio o supremo ideal". Ao escrever, Rousseau sabe muito bem que para além de toda escrita há o indizível e a música e, por isso, o escritor, para ele, não é senão "o copista de uma partitura 'natural', de um 'livro' da Natureza, bem distinto dos 'livros mentirosos' dos homens e ditado pelo próprio Deus, escrito 'no fundo' do 'coração' do homem".
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Mas este escritor-copista é também um pensador político, preocupado com a cidade justa, e um legislador, às vezes confrontado com a tarefa de ordenar, da melhor maneira possível, as cidades existentes.
Como filósofo político, o paradoxo fundamental que procura resolver no "Contrato Social" é o seguinte: de que modo associar os homens, mantendo-os ao mesmo tempo livres e iguais, conforme ordena a natureza? Como se sabe, para solucionar o problema, Rousseau recorre a outro paradoxo: à noção de soberania da vontade geral. Por ser soberana, a vontade não pode ser representada, mas, por ser um modo de coexistência dos indivíduos e não se distinguir do conjunto de seus membros como instância separada (justamente, pois, porque não é exterior aos indivíduos como o soberano em Hobbes), a pessoa pública que é a vontade precisa do seu outro, o indivíduo, para se encarnar. Em outros termos, para ser soberana, a vontade -soberana e, portanto, não-representável- precisa de um mínimo de representação. Conforme observa Salinas, a vontade aparecerá, então, a exemplo da Natureza, como "uma idéia reguladora que pode ser representada de diversas maneiras, mas que está necessariamente para além de todo representante".
Ora, a partir desta idéia, Rousseau terá em mãos o mesmo princípio formal explicitado há pouco, ou seja, uma escala, que lhe permitirá, agora, medir as formas de governo, as formas específicas de representação política ou as situações políticas concretas. Também aqui a escala deverá variar "entre um grau mínimo, de fusão e coesão, e um grau máximo, de separação e divisão". Num extremo, a República ideal, na qual a vontade geral será representada apenas pelas leis, prescindindo até mesmo de uma representação legislativa e expressando-se por intermédio de assembléias populares. No extremo oposto, a morte do corpo político, o despotismo, "figuração exacerbada do malefício próprio ao jogo da representação, na qual um só protagonista usurpa todos os demais papéis e rouba para si o espetáculo".
De posse desta escala, o legislador avaliará as situações singulares, trabalhando por aproximar os governos existentes, tanto quanto possível, do extremo ideal. É por isso, explica Salinas, que não se pode acusar o legislador da Polônia de sucumbir à fórmula da representação parlamentar, após fazer o elogio da assembléia popular. Quando aproximamos a escala a um grande Estado como esse, verificamos que, devido às dimensões do seu território, não se aplica a forma ideal de expressão da vontade geral, admitindo-se, portanto, uma representação por deputados.
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A "Carta a d'Alembert" faz um exame implacável dos efeitos do espetáculo teatral sobre os espectadores. Em sua primeira parte, investiga o conteúdo das peças e conclui de modo drástico: o teatro não consegue transformar os maus costumes em bons, como pretendem os filósofos, mas é bem capaz de realizar o efeito inverso. Além disso, várias outras razões desaconselham sua introdução em Genebra. Por exemplo: uma república não deve adotar "esses espetáculos exclusivos que encerram tristemente um pequeno número de pessoas num antro escuro"; a ela convêm, em contrapartida, festas "ao ar livre", "sob o céu" e "iluminadas pelo sol". Quais serão os objetos de tais espetáculos? "Nada, se quisermos", responde Rousseau. Ou melhor: "Oferecei os próprios espectadores como espetáculo; que eles mesmo se tornem atores; fazei com que cada um se veja e se ame nos outros, para que todos fiquem mais unidos" ("Carta a d'Alembert", págs. 233-4). É este o desfecho da "Carta": ela insiste naquilo que é próprio das tradições de Genebra, ou seja, as festas cívicas da cidade.
Bento Prado Jr. demonstrou certa vez que não se deve assimilar a "Carta a d'Alembert" nem à desqualificação metafísica da representação, nem aos tradicionais argumentos teológico-morais contra o teatro. Na verdade, o livro de Rousseau inauguraria a crítica social e política dos espetáculos, denunciando o procedimento etnocentrista dos filósofos, que examinam o teatro sem passar pelo inventário de suas diferenças ao longo da história (3). Penso que a originalidade da interpretação de Salinas consiste em determinar, por assim dizer, a "lógica" que permite esse inventário. A "Carta a d'Alembert" trabalharia, assim, com o mesmo esquema anteriormente definido, ou seja, com uma escala que permite ajuizar as figuras múltiplas do espetáculo. Num dos seus extremos deve-se situar o teatro clássico francês: trata-se aqui da apoteose da representação, da cena ilusionista que separa radicalmente o palco e a platéia; como se pode adivinhar, é o grau máximo de afastamento em relação à unidade da natureza. No extremo oposto, dá-se a aproximação máxima: com as festas cívicas, espartana ou genebrina, estamos diante de uma espécie de "grau zero de representação", pois aqui cada espectador é ao mesmo tempo ator e, portanto, o próprio espetáculo.
Da arte de medir os discursos e as cidades à arte de medir os espetáculos, eis o caminho percorrido por Salinas no "Paradoxo do Espetáculo". Seu primeiro livro sobre Rousseau, escrito alguns anos antes, se intitulava "Rousseau - Da Teoria à Prática" (Ática, 1978). Título revelador: compreender a articulação entre as formulações teóricas e as avaliações concretas do filósofo era o tipo de desafio que sempre estimulara Luiz Roberto Salinas.

Notas:
1. Rousseau, J-J. "Lettre à d'Alembert", Paris, Garnier-Flammarion, 1967, pág. 48;
2. Como se sabe, esta idéia aparece explicitamente no "Livro 5" do "Emílio": "Antes de observar, é preciso criar regras para as observações: é preciso uma escala para as medidas que tomamos. Nossos princípios de direito político são essa escala. Nossas medidas são as leis políticas de cada país". In "Oeuvres Complètes", Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, tomo 6, pág. 837. Cito de acordo com a tradução de Sergio Miliet (Difusão Européia do Livro, 1973);
3. Prado Jr., Bento, "Gênese e Estrutura dos Espetáculos". In "Estudos Cebrap", nº 14, Ed. Brasiliense, 1975.

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