São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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Reflexões radicais sobre a Ásia

HÉLIO SCHWARTSMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entendo muito mais, por exemplo, de perlocutória da escatotécnica universal comparada do que de economia, o que não chega a ser propriamente um valor intelectual e muito menos moral, mas me deixa à vontade para não ter de fazer previsões econômicas e, mais importante, nem ser obrigado a dar-lhes algum crédito.
Nesse espírito, o livro "21 - O Século da Ásia", de Pepe Escobar, é leitura mais do que instrutiva. Embora a tese central -a de que o século 21, "sem futurologia", vai-se deslocar "do Atlântico para a Ásia-Pacífico" (as aspas constam das orelhas)- esteja agora em baixa (e sabe-se lá se não apenas momentânea) entre os fiéis da ciência econômica, em função da crise nos países emergentes da região, a leitura da obra proporciona a um só tempo prazer e informações úteis.
Trata-se de um texto que transita entre o relato de viagem, a exposição histórico-cultural relativamente detalhada do verdadeiro mosaico étnico do sul e sudeste da Ásia e aquilo que se costuma encontrar num guia de investimentos elaborado por uma grande casa financeira ocidental.
Mesmo para o leitor já habituado ao ecletismo que sempre marcou os escritos de Pepe Escobar, "21 - O Século da Ásia" surpreende, por exemplo, nos paralelos traçados com a vida e obra de grandes escritores que frequentaram a região, como Conrad e Kipling. Antes de mera exibição de erudição, esses paralelos permitem comparar o que era a Ásia algumas décadas atrás com o que ela está se tornando hoje, no que esse processo tem de bom e de ruim; do pântano infestado de mosquitos que se tornou uma das cidades com melhor qualidade de vida do mundo à antiga beleza natural, agora desfigurada pela degradação ambiental (preço do progresso, como afirmam alguns). Vale aqui recordar o mais recente fenômeno das queimadas na Indonésia, cujo preço já pode ser medido em vidas humanas. Para alguns, a metáfora cruel da aplicação das políticas neoliberais; para outros, mero acidente de percurso que pode muito apropriadamente ser atribuído ao El Niño, pouco importa.
As virtudes do livro também encerram alguns de seus inevitáveis defeitos. Por exemplo, logo no começo da obra, o leitor é convidado a uma deliciosamente surreal viagem pela famosa ferrovia transiberiana, de Pequim a Moscou, que se tornou um mercado negro sobre trilhos, exibindo os tipos mais curiosos que se podem conceber. Talvez na tentativa de não se dispersar, a narrativa é abruptamente interrompida (o fulcro é o sul e sudeste asiáticos). O primeiro impulso é correr ao índice para ver se será retomada num próximo capítulo, mas não... Talvez material para uma próxima obra.
Contra o autor (entre aspas) deve-se mencionar que a história o ajuda enormemente. Alguns dos personagens de que ele trata (Lee Kwan Yew, Mohathir Mohamad, monges budistas tailandeses, Pol Pot, entre outros) constituem, por si só, material não apenas para uma riquíssima obra não-ficcional como também, com um pouco de imaginação, para incríveis romances de literatura fantástica.
É das reflexões e ações de um deles, Lee Kwan Yew, ex-premiê de Cingapura, que brota uma das mais intrigantes e provocantes questões do livro, talvez mais importante mesmo que a de saber por onde transitará o dinheiro no próximo milênio. O construtor da moderna Cingapura (o pântano que se transformou numa das cidades onde melhor se vive no mundo, apesar de chibatadas e pena de morte para o porte de um baseado) questiona a tese -e Pepe Escobar o secunda de forma intrigante com a exposição de fatos e diversidades culturais, mas mantendo o necessário distanciamento- de que a democracia é um valor universal.
Embora o simples colocar dessa pergunta possa chocar os ocidentais com as atrocidades do fascismo ainda vivas na memória, a atitude intelectualmente mais contraproducente é justamente não fazer perguntas. Pretensão ainda mais tola seria tentar responder categoricamente a essa pergunta em vez de meditar sobre ela.
Para aqueles que procuram num livro não uma bola de cristal ou um amontoado de certezas sobre o futuro, mas apenas um bom livro, encontrarão na obra de Pepe Escobar leitura agradável, instrutiva e vasto material para reflexões radicais. É ao observar a diversidade de outras culturas que se aprende a conhecer melhor a própria, o que pode ser bem mais útil (e seguro) do que tentar prever o futuro, tarefa árdua mesmo para aqueles que o observarem já como passado.

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