São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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A CENA DO ÓDIO

DA VALA PEDESTRE ONDE ME QUEREM RIR!

Hei-de trovão-clarim levá-La Luz
às Almas-Noites do Jardim das Lágrimas!

Hei-de bombo rufá-La pompa de Pompeia
nos Funerais de Mim!
Hei-de Alfange-Mahoma
cantar Sodoma na Voz de Nero!
Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre,
hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido...
Hei-d'Átila, hei-de Nero, hei-de Eu,
cantar Átila, cantar Nero, cantar Eu!

Sou Narciso do Meu Ódio!
- O Meu Ódio é Lanterna de Diógenes,
é cegueira de Diógenes,
é cegueira da Lanterna!
(O Meu Ódio tem tronos d'Herodes,
histerismos de Cleópatra, perversões de Catarina!)
O Meu Ódio é Dilúvio Universal sem Arcas de Noé, só /Dilúvio Universal!
e mais Universal ainda:
Sempre a crescer, sempre a subir...
até apagar o Sol!
(...)

Tu, que te dizes Homem!
Tu, que te alfaiatas em modas
e fazes cartazes dos fatos que vestes
p'ra que se não vejam as nódoas de baixo!
Tu, qu'inventaste as Ciências e as Filosofias,
as Políticas, as Artes e as Leis,
e outros quebra-cabeças de sala
e outros dramas de grande espectáculo...
Tu, que aperfeiçoas sabiamente a arte de matar.
Tu, que descobriste o cabo da Boa-Esperança
e o Caminho Marítimo da Índia
e as duas Grandes Américas,
e que levaste a chatice a estas Terras
e que trouxeste de lá mais gente p'raqui
e qu'inda por cima cantaste estes Feitos...
Tu, qu'inventaste a chatice e o balão,
e que farto de te chateares no chão
te foste chatear no ar,
e qu'inda foste inventar submarinos
p'ra te chateares também por debaixo d'água,
Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas
e que nunca descobriste que eras bruto,
e que nunca inventaste a maneira de não o seres...
Tu consegues ser cada vez mais besta
e a este progresso chamas Civilização!

Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos,
vai inchando a tua ambição-toiro
'té que a barriga te rebente rã.

Serei Vitória um dia
- Hegemonia de Mim!
e tu nem derrota, nem morto, nem nada.
O Século-dos-Séculos virá um dia
e a burguesia será escravatura
se for capaz de sair de Cavalgadura!

Hei-de, entretanto, gastar a garganta
a insultar-te, ó besta!
Hei-de morder-te a ponta do rabo
e pôr-te as mãos no chão, no seu lugar!
Aí! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos!
Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade!
Aí! Espelho-aleijão do Sentimento,
macaco-intruja do Alma-realejo!
Aí! macrelle da Ignorância!
Silenceur do Génio-Tempestade!
Spleen da Indigestão!
Aí! meia-tigela, travão das Ascensões!
Aí! povo judeu dos Cristos mais que Cristo!
Ó burguesia! Ó ideal com i pequeno
Ó ideal ricócó dos Mendes e Possidónios
Ó cofre d'indigentes
Cuja personalidade é a moral de todos!
Ó geral da mediocridade!
Ó claque ignóbil do Vulgar, protagonista do normal!
Ó Catitismo das lindezas d'estalo!
Aí! lucro do fácil,
cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!
Aí! dique-impecilho do Canal da Luz!
Ó coito d'impotentes
a corar ao sol no riacho da Estupidez!
Aí! Zero-barómetro da Convicção!
bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais!
Aí! Plebeísmo Aristocratizado no preço do panamá!
erudição de calça xadrez!
competência de relógio d'oiro
e correntes com suores do Brasil,
e berloques de cornos de búfalo!
E eu vivo aqui desterrado e Job
E eu vivo aqui sepultado vivo
na Verdade de nunca ser Eu!
Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio,
órfão da Virgem do meu sentir.
E como queres que eu faça fortuna
se Deus, por escárnio, me deu Inteligência,
e não tenho sequer, irmãs bonitas
nem uma mãe que se venda para mim?
(...)

ALMADA NEGREIROS
Trecho do poema "A Cena do Ódio", de 1915

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