São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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Com o dedo na ferida

GABRIELA MICHELOTTI; LAVÍNIA FÁVERO

Raiva, revolta, decepção. Consciência de que você é a única pessoa para fazer aquela tarefa naquele momento. Os motivos de alguns abnegados para se dedicar aos mais ingratos trabalhos voluntários fogem ao estereótipo da "boa alma" movida por inspiração divina.
Versões nacionais da madre Tereza de Calcutá, morta há dois meses, essas mulheres tocam, limpam e cuidam de doentes que a maioria das pessoas não consegue sequer olhar.
POR GABRIELA MICHELOTTI E LAVÍNIA FÁVERO
"Foi um ódio muito grande que me moveu", conta a ex-enfermeira Aparecida Conceição Ferreira, 84, fundadora do Lar da Caridade, em Uberaba (MG), entidade que cuida de doentes do pênfigo foliáceo, nome científico do "fogo selvagem", síndrome que provoca feridas e escamações na pele do corpo todo.
Sua saga começou em 1958, quando Aparecida decidiu levar 12 doentes de "fogo selvagem" para casa, depois de eles terem sido expulsos do hospital onde estavam internados. "Quando vi aqueles pacientes na rua, fracos e sem ter para onde ir, senti muita raiva e decidi mostrar a eles que não se faz aquilo com um doente", conta Aparecida.
Todo mundo tinha medo da doença, que provoca feridas terríveis, bolhas, coceiras e manchas vermelhas que "ardem como fogo". A falta de informação gerava mais preconceito, porque achava-se que a doença era contagiosa.
"Fiquei dois dias com eles em casa. Minha família, no começo, não aceitou. Exigiu que eu escolhesse entre eles e os doentes. Preferi os doentes", diz a ex-enfermeira.
Aparecida ficou muito tempo trabalhando sozinha em uma sala emprestada de um asilo. "Eu tinha de dar banho de permanganato neles, passar verniz de caseína. Ensinava os que estavam melhores a ajudar os doentes mais graves, porque não dava conta de tudo sozinha. A vizinhança do asilo queria me expulsar, reclamava das roupas, sempre sujas de pomadas, que davam uma trabalheira para lavar."
Aos poucos, os filhos de Aparecida foram aceitando a decisão da mãe e passaram a ajudá-la. Foram necessários dez anos até que ela conseguisse montar um hospital, hoje com 150 leitos. "Cheguei a ter 300 pacientes. Fazia de tudo para mantê-los. Pedia esmolas e ia a São Paulo fazer campanhas."
Se há 40 anos havia medo e preconceito, a situação hoje não é muito diferente. Tanto que a equipe do Lar da Caridade ainda é formada basicamente pela família de Aparecida: sete filhos e vários dos 26 netos trabalham de graça. "Os médicos têm preconceito dos pacientes com pênfigo porque é uma doença de pobre. Ninguém quer um deles no seu consultório", diz Luiz Guilherme Martins Castro, dermatologista do Hospital das Clínicas.
"A gente faz de tudo: cozinha, lava a roupa, faz serviço de enfermagem. É como se fosse nossa casa", diz Ivone Martins Evangelista, 54, a filha mais velha de Aparecida e a primeira a ajudar a mãe. "Comecei com 18 anos e vi muita dor. Enquanto minhas irmãs encaravam a vida como algo feliz, eu estava em contato com o sofrimento."
O tratamento do pênfigo é demorado. "Nunca vi ninguém se curar em menos de sete anos. Melhora, mas volta depois. Já tive pacientes que levaram 18 anos para sarar. Eles ficam mal-humorados, porque as lesões ardem e coçam muito. Alguns ficam deprimidos. É preciso cuidar das visitas, porque elas passam um ar de repulsa. Os doentes sentem muito e até as evitam", diz Aparecida.
O Lar da Caridade recebe pessoas abandonadas pela família que, mesmo com a doença controlada, continuam no hospital cuidando dos outros doentes, porque acumularam muitas mágoas de parentes e amigos. "Eles se casam entre si. Muitos doentes não recebem visitas há anos", lamenta Aparecida.
Os pacientes morrem mais em decorrência do longo tratamento com corticóides, do que do mal, cuja causa ainda é desconhecida. Sabe-se apenas que é uma síndrome auto-imune: o corpo começa a produzir anticorpos que atacam a pele. "Muitos passam a sofrer do coração, fígado e pulmões, por causa dos remédios. É muito triste quando um deles morre, é como perder um irmão", diz.
O clã de Aparecida se organiza em volta da matriarca. "Isso contagia. Eu me formei em zootecnia e não queria trabalhar com minha avó. Vim para o hospital para ficar pouco tempo e fui fisgada, não consegui sair. No começo era difícil, eu chorava muito", conta Ivone Aparecida Vieira da Silva, 34.
Com uma usina de reciclagem de plástico, padaria, açougue e uma fazenda de criação de porcos, gado leiteiro e granja, o hospital tenta sobreviver com recursos próprios. "O leite, que era um gasto muito grande, hoje é produzido aqui", orgulha-se Aparecida, que, apesar da idade avançada, gerencia o Lar, limpa as crianças, ajuda na cozinha e encontra tempo para dar a bênção diariamente aos seus 27 bisnetos.
Colônia de leprosos
Também foi a revolta que levou a religiosa Natália Dornellas, 80, a se dedicar aos doentes do mal de Hansen. "Resolvi me oferecer depois de ver um paciente ser praticamente expulso do hospital onde eu trabalhava", conta.
Há 54 anos, quando ainda se chamava a hanseníase de "lepra" e os doentes viviam isolados, a religiosa começou a tratá-los. "Saí do noviciado e fui trabalhar em um hospitalzinho de Rio Casca, em Minas Gerais. Um dia, chegou um hanseniano e os médicos fizeram um barulhão, dizendo que precisavam tirá-lo logo de lá. Naquele tempo, a lepra era tabu. Esse homem ficou internado só uma noite e não sei quem chorava mais, se era ele ou eu. Aquilo me comoveu de uma maneira que senti que deveria viver no meio deles para ajudá-los. Foi então que me ofereci para trabalhar aqui na colônia, em 1943", conta Natália.
Localizada na zona rural de Goiânia, a Colônia Santa Marta atende hoje 300 portadores do mal de Hansen, além de ajudar as famílias dos doentes. Na época em que a irmã se mudou para lá, não havia como contratar funcionários, porque ninguém se dispunha a chegar perto dos doentes. "Tivemos quase 2 mil pessoas internadas aqui. Como éramos só as irmãs, tínhamos de fazer todo tipo de serviço, de cozinhar a colocar os piores curativos", conta.
A saída foi a mesma usada por Aparecida: ensinar os pacientes em melhor estado a cuidar dos que estavam piores. As freiras trabalharam 20 anos nessas condições. Só nos anos 70 foram contratados os primeiros funcionários. Mas o preconceito continua.
Provocada por um micróbio, a hanseníase ataca os nervos da pele, provocando manchas, feridas em carne viva e perda da sensibilidade. O "leproso" se queima e esmaga os dedos, porque não sente a dor. É curável e só transmitida por contato prolongado com doentes.
Agora, Natália cuida de mulheres da colônia que, além da hanseníase, têm algum tipo de problema mental. Alojadas no pavilhão Santa Luísa, elas provocam ainda mais pena nos visitantes. "Meu trabalho é mais de dar apoio, ver as necessidades delas, porque a minha saúde não permite muito esforço", diz a religiosa. São 16 mulheres, com as quais conversa diariamente:
- Os seus dedos não são duros como os meus, irmã. Não posso mais costurar - lamentava-se uma doente, há 10 dias.
- Ainda não, minha filha. Mas, não se preocupe, nós vamos desenrolar esses dedos - responde Natália.
Desafio ao medo
Das novas doenças, a Aids é a que provoca mais estigma, apesar das inúmeras campanhas de esclarecimento sobre o contágio.
Com o apropriado nome de "Alma", a secretária-executiva Alma Coletti Santander, 50, é uma das fundadoras da Associação dos Voluntários no Apoio aos Portadores de Aids (Avaids), entidade que reúne 16 pessoas.
"Em 89, o Hospital Emílio Ribas fez um treinamento de três meses para voluntários que quisessem trabalhar com doentes de Aids. Entrei porque tenho sempre a vontade de conhecer de perto aquilo que me assusta", diz Alma.
Ela conta que descobriu "um cenário trágico, de famílias que abandonavam os pacientes ou estavam na miséria, porque o chefe da família estava doente."
O primeiro trabalho de Alma foi combater o despreparo das famílias para lidar com a doença. "Vamos à casa do paciente, lavamos sua roupa, damos banho, para mostrar à família que não há risco de contágio", diz Alma.
Hoje, a Avaids é uma extensão do serviço social dos hospitais. "O Emílio Ribas entra em contato conosco dizendo que tem um paciente ou uma família que precisa de apoio. Um voluntário vai ao local, que normalmente é uma favela, um barraco em cima de um córrego ou algum cortiço", explica.
A entidade dá apoio material, psicológico, jurídico e afetivo para 120 famílias. O trabalho inclui tentar reestruturar o núcleo familiar. Um dos casos tratados por Alma foi o de um homem de 40 anos, com Aids, que vivia isolado em um quarto no fundo da casa. A mulher o abandonou e o irmão gritava que tinha medo de pegar a doença. Ninguém alimentava o paciente, não limpavam seu quarto, jogavam fora a sua roupa suja. "Mas o que mais cortou o meu coração foi saber que o filho pulava a janela toda vez que precisava sair de casa para não encontrar o pai. Eu chorava toda vez que ia até lá", lembra-se Alma. O homem acabou sendo internado em uma casa de apoio e morreu, por ironia do destino, depois do seu irmão, assassinado em uma briga de bar.
O trabalho como voluntária atrapalhou no início a própria vida familiar de Alma. Seu filho reclamava de ter de dividir a atenção da mãe. "Isso consome muito do meu tempo. Normalmente, trabalho cedo ou depois do expediente. Mas, no fim-de-semana, me dedico integralmente aos doentes. Minha família demorou a aceitar. Uma vez, minha mãe disse que eu estava deixando minha família de lado para cuidar de estranhos. Mas, se tem uma pessoa com maior necessidade, sinto obrigação de ajudar."
Alma diz que seu trabalho tenta tornar o mundo um pouco menos individualista. Espírita, acredita que "a morte não é o fim." "Consigo lidar com o problema melhor do que muita gente que não encara uma doença incurável."
"Alguém precisa se mexer." Com esse slogan, a Associação Cruz Verde está tentando obter ajuda financeira para a sua casa, que atende 206 crianças com paralisia cerebral. Lá, elas recebem cuidados médicos, além de roupas, comida e afeto. "Nosso principal intuito é melhorar a qualidade de vida dessas crianças e prolongá-la. Sabemos que a doença é irrecuperável, mas, com tratamento adequado, conseguimos ter pacientes que chegam aos 36, 40 anos", afirma Marilena Esposito, administradora do hospital.
A entidade, filantrópica, vive de recursos dos doadores associados, do bazar permanente e da doação de alimentos. "O hospital está sempre precisando de recursos. Há muitas crianças na fila de espera, já que a maioria que entra aqui só sai por óbito", diz Marilena.
O atendimento de voluntários é difícil. "As crianças precisam de enfermeiras 24 horas para alimentá-las, lavá-las, dar remédios, colocar sondas e aspiradores, já que são totalmente dependentes. Além disso, pouca gente aguenta trabalhar com portadores de paralisia cerebral, porque não há aquele retorno de ver o paciente sarar."
A doença, que pode ter várias causas, atinge a criança no útero, durante o parto ou nos primeiros dias de vida. Entre as causas pré-natais, estão hemorragias da mãe, descolamento prematuro da placenta, doenças infecciosas como rubéola e mau posicionamento do cordão umbilical. Os pacientes mais graves não falam, não têm controle motor, nem se alimentam sozinhos.
Apesar de tantas limitações, a professora Clélia Mendonça Sica, 47, há sete anos voluntária na escolinha da Cruz Verde, diz que "as crianças transmitem muita força, alegria e vontade de compartilhar". Uma vez por semana, ela dá aulas para 30 crianças, com jogos, pintura e brincadeiras com letras. "Começamos a ensinar o alfabeto sem nenhuma pretensão, mas estamos sendo surpreendidas. Algumas conseguem até formar palavras", diz.
Clélia afirma que não se sente pressionada por resultados, quer só "dar algumas horas de alegria aos doentes".

COMO AJUDAR
Associação Cruz Verde: crianças com paralisia cerebral. R. Diogo de Faria, 695, Vila Clementino, região sudeste. Tel. 570-7335. Bradesco, ag. 0548-7 c/c 7200-3. Banespa, ag. Brooklin c/c 02032400-5
Lar da Caridade: pênfigo. R. João Alfredo, 437, Uberaba (MG). Tel. (034) 332-2919. Bradesco, ag. 0264-0 c/c 14572-6. Itaú, ag. 0321 c/c 00859-1
Avaids: Aids. R. Beneficência Portuguesa, 24, cj. 1.116, região central. Tel. 228-9940. Bradesco, ag. 095-7 c/c 41909-5
Colônia Santa Marta: hansenianos. Caixa Postal 116, Goiânia, GO, CEP 74.000-791. Tel. (062) 206-1441. Banco do Estado de Goiás, agência 0160 c/c 0540-356/1

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