São Paulo, segunda-feira, 17 de novembro de 1997
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Solução para a saúde virá dos municípios, diz médico

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

A tendência de cortes no financiamento da saúde deve provocar um sucateamento nos serviços com graves reflexos nas classes média baixa e baixa. A falta de leitos nas maternidades se agravará e cenas de bebês nascendo em camburões serão frequentes. Depois da volta do sarampo, doenças já erradicadas como a poliomielite poderão ressurgir.
Esse cenário cinzento é desenhado pelo médico e professor de administração hospitalar Gonzalo Vecina Neto, 44, diretor executivo do Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Com passagens pelo antigo Inamps, pelo gabinete da Prefeitura de São Paulo e pela iniciativa privada, Vecina é um defensor da descentralização. Aposta todas as cartas nos municípios e acredita que eles mudarão o cenário.
"A solução Brasil virá do município", afirma. "Há uma revolução acontecendo em dezenas de cidades médias, com iniciativas que não poderiam ser pensadas nem comandadas de Brasília."
Vecina diz que vê com bons olhos a transformação de organizações estatais públicas -como o Hospital das Clínicas, por exemplo- em uma organização social autônoma. Mas adverte que a proposta do governo traz embutida a intenção de empurrar o financiamento para a sociedade. "O governo não pode se desresponsabilizar do financiamento da saúde", diz. "A sociedade não terá condições de arcar com essa conta."
Abaixo, os principais trechos da entrevista que Vecina concedeu à Folha na semana passada.
*
Folha - Por que a municipalização é tão importante na saúde?
Gonzalo Vecina Neto - Um país desse tamanho não pode ser gerido e administrado de Brasília. Uma modalidade central de governo impede a criatividade e a iniciativa. O Jamil Haddad, no último período do Itamar Franco, foi talvez o melhor ministro da Saúde porque não fez nada, apenas deu espaço para que se construísse uma proposta de descentralização. Ações locais, como as gestões semiplenas, por exemplo, foram construídas e ganharam corpo na gestão do Jamil.
No país, há um medo generalizado de se descentralizar, porque acham que a corrupção aumentará e que se perderá o controle sobre a estrutura. É o clientelismo.
Folha - Os mecanismos de participação existem?
Vecina Neto - Na área da saúde a Constituição prevê que a gestão tenha algum nível de controle social. No caso, por meio dos conselhos de saúde.
Essa é uma forma de democracia participativa, mas ela muitas vezes se choca com a democracia representativa. Elas não se anulam, mas as tratamos como se uma anulasse a outra. O prefeito, por exemplo, não consegue conviver com um conselho municipal de saúde.
A civilização passa por uma democracia diferente daquela exclusivamente representativa. Para chegarmos a essa civilização, é preciso transformar os espaços onde as pessoas vivem em espaços decisórios. É aí que se construirá um novo mundo. O Estado deve ter a capacidade de dar oportunidades e ao tempo regular as atividades das pessoas para que não façam mal entre si. O papel do Estado é o da regulação, não o da regulamentação.
Folha - O que está impedindo a descentralização?
Vecina Neto - Não vejo disposição política em nível federal e mesmo de alguns Estados.
Apesar dessa resistência, há um espaço que o município tem que ousar preencher.
Já há muita coisa acontecendo nesse espaço, como o médico de família, o agente de saúde, o programa "município saudável".
É inacreditável o número de experiências que estão acontecendo nos municípios médios, é uma verdadeira revolução sendo feita fora dos gabinetes de Brasília.
Folha - O PAS (Plano de Atendimento à Saúde) de São Paulo está dentro dessas propostas?
Vecina Neto - A proposta teórica do PAS, com algumas nuances, é semelhante à implantada na Catalunha Espanhola e na Costa Rica.
A diferença é que o PAS não tem controle social, foi esterilizado, por isso fracassou. Na prática, virou um mecanismo de distribuição de favores entre os vereadores.
Folha - O presidente da República diz que não falta dinheiro na saúde, falta gerenciamento.
Vecina Neto - O presidente fala uma meia verdade, que é o gerenciamento. Nós falamos a outra metade, que é a falta de financiamento. Há interesse lá do alto -da Fazenda, com certeza- em tentar mostrar que o problema está no gerenciamento e que é preciso haver cortes no financiamento.
Mas o fato é que a saúde precisa de mais dinheiro. Qualquer plano de saúde gasta hoje em torno de R$ 600 por pessoa/ano, sem fazer prevenção, aplicar vacinas etc. O setor público -somando União, Estados e municípios- não gasta R$ 120 por ano, per capita.
Folha - Que cenário o senhor vê para a saúde nos próximos anos?
Vecina Neto - Se a regulamentação dos planos de saúde for muito dura, inviabilizando parte das empresas, e se permanecer a tendência de financiamento decrescente, teremos um colapso. O setor terciário, que cuida de problemas mais complexos, entrará em parafuso. O secundário -as emergências e procedimentos de média complexidade- terá de ser salvo pelos municípios. Se isso não acontecer, a classes média e baixa serão durante atingidas, faltarão leitos para partos e crianças nascerão nos camburões.
Folha - A crise econômica atual pode agravar esse quadro?
Vecina Neto - A crise acirra sentimentos individualistas.
Recentemente, alguém propôs que fossem fechadas áreas dos bairros do Alto da Lapa e do Alto de Pinheiros (zonas noroeste e sudoeste de São Paulo). É uma proposta de isolamento, é um afastamento da civilização.

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