São Paulo, segunda-feira, 17 de novembro de 1997
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Quanto mais duro vierem, mais rápido passarão

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Um dia, no Rio, minha mulher foi assaltada no momento em que falava comigo, usando um celular. Ela estava diante de um sinal vermelho e o assaltante parece não ter notado que ela deixou o telefone no colo.
Ouvi tudo e nada podia fazer. Onde estavam nesse momento? Ela entregou ou não o dinheiro? Acompanhar por telefone coloca duas experiências-limite para mim: a sensibilidade dos cegos e a necessidade de reagir no instante, on-line.
A prisão do Planet Hemp em Belo Horizonte e no dia seguinte em Brasília me fez passar duas noites em claro, ligado ao telefone celular dos meninos. O assalto à minha mulher foi rápido, quase fulminante.
Já a prisão dos meninos foi longa, com muito mais sons enigmáticos, vozes de susto, palavrões voando como balas perdidas nas ruas da minha cidade. Tudo pode começar com a voz ao longe: eles estão me prendendo.
A partir daí, haja bateria de um lado, boas cadernetas de telefone, papel e lápis de outro. Eles quem, porra? Eles, a polícia de Belo Horizonte. Nesse momento, você é apresentado à polícia, imagina quantos são, que tipo de armamento usa, que acusação faz, se encontrou ou não alguma coisa:
- Mas está tudo limpo?
Sim, estava tudo limpo. Não encontraram nenhum sinal de maconha, exceto um chaveiro com a folha da planta. E agora? Agora estão levantando o chaveiro e dizendo:
- Tá vendo. É folha de maconha. Apologia, seus putos.
Apologia. Desligaram. Consulto o dicionário e concluo que apologia vem de Apolo, o mais poderoso e belo dos deuses. Será verdade? Ligam de novo:
- Estamos indo para a delegacia.
Como estão indo? No camburão, qual delegacia, que telefone?
A partir de agora não ligam mais. Só empresário, gente da produção, corre-corre. Finalmente, eram quase seis da manhã, novo chamado:
- Estamos livres, vamos direto de ônibus.
O dia clareava e pensei: não faz mal, de noite dormirei bem.
Por via das dúvidas, uma chamada para Brasília:
- Tudo bem. O show vai começar.
Maravilha, pensei, me atirando embaixo dos lençóis.
Madrugada, de novo o telefone:
- Estão prendendo a gente? Isso pode?
- Deixe eu falar com o delegado.
- Ele quer falar com o senhor.
Ouço de longe a resposta do delegado:
- Que venha na hora do expediente.
Tento imaginar toda a cena, mas cai a ligação. Agora liga de novo Lobato, que está solto e acompanha de perto:
- Estão querendo levar todos.
- E o advogado?
- Qual advogado?
- O que ia garantir o show?
- Parece que foi embora. Mas o secretário de Turismo estava no show.
- Então chama o secretário de Turismo.
- Ele estava aqui, mas não o vejo mais.
Vozes, ruídos, lembro-me do livro "Um Antropólogo em Marte". Tento funcionar como um cego, analisando as vozes, separando ruídos, tentando imaginar distâncias físicas:
- Mas, se estava aí, não deve estar longe.
- Pois é, mas está confuso, sumiu.
Sinto que levaram os meninos. A produção me telefona do hotel:
- A polícia não deixa a gente entrar nos quartos. Interditados.
- Passe na gerência, peça uma carta do gerente dizendo que não deu as chaves porque a polícia ocupa os quartos.
- Ok.
Nova pausa.
- Alô. O gerente diz que não pode dar a carta.
- Tente fotografá-los na porta do quarto. Vocês trouxeram a câmera de TV?
- Não, logo hoje, cara, não trouxemos.
- Tente um jornalista, ache alguém que documente a presença deles na porta dos quartos.
A esta altura, alta madrugada, só resta buscar um advogado para cobri-los.
- Vocês têm advogado em Brasília?
Problema? Como, acordando o mínimo de gente possível, despertar um bom advogado na madrugada? Ligo para um amigo. Ele tem o número de Dalambert Jacoud. Este eu conheço, vantagens de ser dinossauro. Trabalhamos no "JB".
- Dalambert. Olha, prenderam o Planet Hemp. Precisamos de alguém para assisti-los. Topa?
Dalambert tosse, silencia, tosse de novo:
- Faria com prazer. Mas estou com uma crise de asma. Tento outra pessoa.
Desligo imaginando como sobrecarreguei o velho companheiro de jornal. Fazê-lo buscar seu parceiro em plena madrugada, com uma crise de asma.
Lobato:
- Estou na porta da polícia. Botaram barreiras, com medo dos fãs. Mas entrou uma equipe de TV.
- Pergunta por que entrou a TV e você não entra.
Ouço a pergunta nitidamente. O policial responde:
- A equipe da TV Globo foi convocada. Já tem um advogado por lá.
- Como advogado? Pergunto: Você chamou?
Lobato não tinha chamado. Não era Nabor, o parceiro de Jacoud.
- Quem é esse advogado?
- Não sei.
- Tem de saber. Se você não chamou, eu não chamei, porra, são eles. Os meninos sabem que não podem falar nada?
- Sabem. Mas não vão falar até chegar o advogado.
- Tente entrar de qualquer jeito, fale com a polícia na barreira, descubra quem é.
Pausa.
- O policial diz que é um bom advogado. Defendeu os que queimaram o pataxó.
- Isso é uma loucura. Tira esse cara da jogada, fale claramente que ainda não há advogado. E reze para que não caiam na cilada.
Desligo. Entra Dalambert. Tosse.
- Falei com o Nabor, ele topa. Mas só pode chegar lá às oito da manhã.
Fechado. Nabor ligaria para os meninos e instruiria para nada falarem.
Quem sabe um cochilo? De novo, o telefone.
- Estou com a grana do show. Não posso entrar no hotel?
Onde colocá-la?
- Consiga outro hotel, só falta serem presos e roubarem a grana do show.
O dia amanheceu. Fiquei pensando como podemos melhorar no futuro. Quanto mais duro vierem, mais rápido passarão. Quem sabe um núcleo de emergência, preparado para reagir, ensaiado, sabendo quem procurar em que cidade, acionando a mídia para garantir testemunhas.
Aos poucos, o projeto de autodefesa ia se desenhando na minha cabeça. Mas queria voltar ao livro "Um Antropólogo em Marte", novos estudos. É preciso aprender a viver uma parte da vida usando o telefone celular e a crise nos mostrou isto, mesmo depois da prisão do Planet. É preciso desenvolver a sensibilidade para certos sons, calcular distâncias mentalmente, imaginar que o interlocutor tem liberdade de movimentos, enfim, aprender novas linguagens.
Tudo isso é meio marginal, diante de um fato tão grave como a censura à liberdade de expressão, diria você. O que fazer? Já que nos condenam à marginalidade, explorar novos caminhos. Cada vez que olho para eles, em Brasília, penso: tudo é válido, desde que a gente nunca termine como eles, com uma cabeça tão fechada, que passam a maior parte do tempo dando tiro no próprio pé.

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