São Paulo, sexta-feira, 21 de novembro de 1997
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Por que os ex-subversivos querem ser 'oficiais'?

GERALD THOMAS
EM NOVA YORK

A vanguarda está se vendendo para o que der e vier. Mark Morris, um dos coreógrafos mais controvertidos da década de 80, que colocou Bruxelas de cabeça para baixo durante seu reinado no La Monnai (o Teatro Municipal de lá), estará, em breve, estreando como um simples diretor de um musical da Broadway sobre um imigrante latino, concebido e composto por Paul Simon.
Vale a pena ressaltar que a figura do "diretor" de um musical da Broadway é aquela que menos aparece. Esse "anonimato" é, com certeza, conflituoso para o nosso querido Morris, "rainha" absoluta da coreografia sacana, sadomasoquista dos anos 80. Ele é descendente (de uma certa maneira) de Jean Genet e de Lindsey Kemp (que, coincidentemente, coreografou peças de Genet na década de setenta) e tem uma enorme afinidade com a dança "assumidamente gay" de Michael Clarke e Stephen Petronious.
É um choque, portanto, o anúncio de que iria dirigir um musical sobre um tema que não é da sua praia.
Por que Mark Morris teria aceitado isso? Por que diretores de teatro e de cinema viram colunistas de jornal e celebridades televisivas? Por que Paul McCartney -que já tem seu nome gravado pra sempre na história- tenta ser Tchaikovski e compõe a mais cafona e ridícula sinfonia, a "Standing Stone"? Por que as estrelas da "off-off Broadway" dos anos 70, como Willem DeFoe e atores do Living Theater, do Richard Foreman, do Mabou Mines, acabam nos subúrbios de Hollywood, nos papéis mais imbecis em seriados de merda?
Por que Courtney Love declara que quer ser a Sharon Stone? Por que Costa Gavras, de "Estado de Sítio", dirige, hoje, o thriller urbano, somente razoável, chamado "Mad City"? Por que todos os ex-subversivos querem se tornar, agora, "oficiais"?
Será que o desespero da obrigação de ter que se renovar perante a mídia, de ter que ser o "dernier cri", se exauriu? Será que a "fórmula" da arte conceitual, da desconstrução, da dissecação de nossos mitos, da atonalidade e polifonia de sensações dos últimos 30 anos chegou ao fim?
Essa fórmula foi, sem dúvida, impessoal e fria, na medida em que o artista parou de consultar seus sentimentos e passou a ter sua "voz" regida por uma estética, uma filosofia, um movimento social, uma grife, uma justificativa, enfim, alguma forma de "entendimento" racional sobre seu papel no planeta Terra.
Mas a modernidade racionalista lhe pregou uma peça, obrigando o cerne de sua "auto-investigação" a ser um produto rentável e acessível à antropofágica sociedade que consome, devora, sempre o "novo", o "mais avançado", o "último" a cada nova estação. O artista conceitual dos meados deste século acabou virando uma caricatura de si mesmo, acabou vítima do travestimento de "modernidade", e o mercado o exauriu.
Talvez o feitiço tenha virado contra o feiticeiro com a chegada de Warhol, que idolatrou o mercado, que transformou o próprio consumo em musa e que, além de artista, foi publicitário e vidente, quando transformou a língua sedenta daquele Jagger de "No Satisfaction" no logotipo dos Stones e fez com que ela começasse a babar milhões de dólares por ano.
"O que fazer diante desse paradoxo?", deve ter pensado Morris, depois que sua última apresentação no BAM foi considerada um fracasso de critica e de público. Reclamar? Ficar paralisado ou aceitar o primeiro emprego que o "sistema" lhe oferecer? O anúncio que Mark Morris dirigiria um musical foi um choque e, ao mesmo tempo, um alívio. Porque confirmava que nada, em arte, deve ser tratado com tanta seriedade quanto tem sido nestes anos todos do poder da vanguarda.
Sua atitude lembra aquela tomada por Duchamp quando parou de ser artista para se dedicar, exclusivamente, ao jogo de xadrez. A verdade é que Duchamp nunca deixou de ser artista, mesmo quando, nos últimos anos de sua vida, viajava pela Europa, comprando arte dos outros, enriquecendo a sua coleção e a de Peggy Guggenheim. Talvez o artista volte a ter as características mais primitivas no futuro, volte a ter uma certa reverência pelo domínio de sua respectiva técnica, em vez de ser o genérico diletante, "caminhando contra o vento sem lenço e com Documenta".
A vanguarda deste século foi heróica. Tentou, a cada dez anos, dar uma nova identidade ao ser humano, decretando mortes imediatas e inventando caminhos novos, impenetráveis, criando retratos falados que se desfaziam ao longo dessa impensável auto-investigação. Mas o fato é que, no fim deste milênio, estamos somente com uma cara virtual.
Como seremos retratados, daqui a 50, cem anos? Será que viraremos um estereótipo de Picasso, com a cara dividida e deformada? Estaremos todos embrulhados num "Christo"? Seremos lembrados como um terreno baldio, cheio de destroços Beckettianos ou seremos uma pilha de latas de sopas Campbell? Vanguarda ou não, o artista estará sempre na frente do seu próprio tempo, estará sempre tentando buscar sua identidade no lugar que não lhe pertence.
Mark Morris fez uma jogada de gênio ao aceitar o musical da Broadway. Sem saber como será retratado daqui a 50 anos, Morris optou por ser lembrado como um homem cujo destino não precisava de explicações ou longas teorias frias e racionais; um homem de lugar nenhum, sua identidade jogada ao acaso, como numa ficção de Paul Auster. E, como numa ficção de Paul Auster, talvez voltaremos a nos encantar pelo espaço enigmático e negro que nos envolve. Negro, turvo, incerto e emotivo como aquele espaço onde Beethoven habitou no dia em que compôs a sua "Serenata ao Luar".

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