São Paulo, sábado, 22 de novembro de 1997
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Sai homenagem extravagante a Piazzolla

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Letônia não é exatamente o país do tango, nem a Noruega a pátria do "bandoneón". Some-se Áustria (contrabaixo) e Rússia (piano) e o resultado é o mais extravagante conjunto de tango jamais formado, para homenagear a obra de Astor Piazzolla (1921-1992).
Sob o comando do violinista Gidon Kremer e valendo-se ainda do duo Assad de violões, mais os "recitantes" Caetano Veloso e Milva, o Astor Quartet lançou recentemente o CD "Astor Piazzolla: El Tango", que chega agora às lojas brasileiras.
São oito tangos de Piazzolla, além de "Los Mareados" de Juan Carlos Cobian e dos quase tangos, ou não tangos, "My Happiness" e "Instead of a Tango", respectivamente de Leonid Desyatnikov e Giya Kancheli (nomes fantásticos que mais parecem invenções de Jorge Luís Borges). O resultado final é menos extravagante do que tímido: mais uma vontade de tango do que a coisa em si.
O interesse recente pelo tango entre os músicos "sérios" já deu outros frutos mais saborosos, como o CD dos pianistas Emanuel Ax e Pablo Ziegler (Sony) e o lindo "Mi Buenos Aires Querido", de Daniel Barenboim (Teldec). O projeto de Gidon Kremer é tão entusiasmado e simpático que dá pena falar mal do disco; mas não dá mesmo para falar muito bem.
Até o seu violino soa fora de estilo em tangos luminosos como "Revirado" ou "Decarissimo" e a combinação com o bandoneón de Per Arne Glorvigen em "Los Mareados" faz de Buenos Aires a capital folclórica de uma província nórdica. Afinação impecável, todas as notas no lugar, silêncios bem construídos, cuidado extremo com os detalhes: nada disso é o bastante para a música chegar àquelas alturas de sentimentalidade e verdade, sem o que os tangos de Piazzolla soam simplesmente repetitivos, falsos, pretensiosos.
Caetano Veloso recita o poema "El Tango", de Borges, num registro teatral, mas discreto, que contrasta com o pano de fundo nada borgesiano da música.
Já a cantora Milva faz exatamente o oposto: agarra-se ao kitsch para energizar o "Preludio para el Año 3001", que Amelita Baltar já cantava no limite do esteticamente digno. A maior parte do CD, felizmente, não envolve canto e serve, no mínimo (no máximo?), como outra luz projetada sobre a música do maior compositor médio da Argentina. (Dizer, como Kremer no encarte, que a obra de Piazzolla "oferece um exemplo perfeito de como a música contemporânea pode ser profunda" não é só uma frase mal escrita, mas espantosamente inapropriada para um músico desse quilate. Promove Piazzola a outro mundo, que não é o seu e onde não resiste às comparações.)
Hanna Schygulla No domínio aparentado da "chanson" -a verdade do falso, a razão da histeria- a atriz Hanna Schygulla sai-se melhor em seu disco de estréia como cantora. O compositor Jean-Marie Sénia musicou, ao que tudo indica só para esse disco, treze letras de Jean-Claude Carrière e do cineasta Rainer Werner Fassbinder, a quem Schygulla deve a sua transfiguração nas formas definitivas de Maria Braun e Lola, entre outras antimusas.
Falar da qualidade da música, nesse caso, é um equívoco: a música quase não existe, é uma coleção de retalhos ou lembranças de música, um conjunto de clichês que não chega a ser maior do que as partes. Vale o mesmo para as letras (bem traduzidas para o francês ou alemão, conforme o caso, pela própria cantora), com a diferença de que os clichês, nesse caso, vêm de outro repertório alternativo, do baixo-realismo de pós-guerra.
São canções para gente de teatro, pequenos cenários sombrios, com letras perversas para melodias triviais. Mas Hanna Schygulla sabe o que está fazendo e não se arrisca para além das leis do gênero. Quase não canta: fica entre o cantado e o falado, ou suspirado.
Nem todo mundo terá paciência para escutar as treze faixas em sequência, todas muito parecidas e insistentes nessa contra-sabedoria da madrugada. Mas seria uma pena não chegar à 14ª, um verdadeiro bônus, que é a versão de Schygulla para "Lili Marleen". Desencarnada, em ruínas, perdida para a história e para si mesma, essa é uma "Lili Marleen" do nosso fim de século.
É uma canção do trauma, mais do que da nostalgia; e só é capaz, afinal, de repetir, sem muito sentido, o lamento pelas coisas como eram: "wie einst, Lili Marleen". É uma canção da guerra que ainda não acabou, e que os filmes de Fassbinder e as canções de Schygulla nos obrigam, mais uma vez, a enfrentar.

Disco: Astor Piazzolla: El Tango
Lançamento: CD Nonesuch, 1997
Disco: Hanna Schygulla Chante R.W. Fassbinder e Jean-Claude Carrière Lançamento: CD Erato, 1997

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