São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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INDIVÍDUO SENSACIONAL

FELIPE FORTUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LONDRES

"Sensation", a exposição de maior sucesso em Londres, é também uma das menos compreendidas. O público ainda se comporta muito mal assim que atravessa o primeiro salão da Royal Academy of Arts: já jogou ovos numa pintura, tentou agredir espectadores favoráveis às peças exibidas e pediu o fechamento daquele espaço, até então um bastião do conservadorismo artístico.
A hostilidade é provocada pela mistura de erotismo, violência, vulgaridade e humor trazida pela nova geração de artistas britânicos. O nome mais famoso é o de Damien Hirst, que apresenta animais seccionados e mergulhados em tanques de formol. Toda a coleção pertence ao milionário Charles Saatchi, que há algum tempo compra a produção integral dos jovens artistas e a expõe no seu próprio museu, ao norte da cidade. Para muitos, a exibição na Royal Academy of Arts tem um efeito tão destruidor para o establishment artístico quanto o da princesa Diana para a família real.
Um pouco de ponderação é suficiente para entender a histeria formada em torno à exposição "Sensation". Primeiramente, foram reunidas peças deliberadamente provocadoras no mesmo lugar que, na década de 50, ainda rejeitava as telas de Picasso. Os críticos de arte do país, dentre os quais Waldemar Januszczack, do "Sunday Times", reconhecem que foram necessários 200 anos para que a Royal Academy of Arts escapasse de vez à sua letargia.
Em seguida, não se deve esquecer que a arte contemporânea ali exibida é profundamente britânica -britânica na obsessão, britânica na morbidez e, paradoxalmente, na continuidade da tradição artística. O retrato da criminosa Myra Hindley ("Myra", de Marcus Harvey) é um enorme painel de 4 m X 3,5 m que reproduz a foto policial divulgada pelos jornais da mulher que, na década de 60, assassinava crianças.
O público se horroriza com o que imagina ser uma espécie de monumental veneração ao anti-herói social. Fica ainda mais perturbado ao perceber que a foto excessivamente ampliada é formada por pontos ("pixels") que têm a forma de pequenas mãos de crianças. A fim de atenuar o impacto, o público é informado de que as mãos foram impressas a partir de um molde, não com mãos verdadeiras de seres inocentes. No museu, ao lado da identificação do quadro, surge uma outra informação: a de que o crime de Myra Hindley foi "horroroso".
Damien Hirst corta com precisão vacas, ovelhas e porcos, os mesmos animais que povoam o interior do país e até mesmo as áreas suburbanas. O animal até então livre no pasto ou preso no espaço do seu chiqueiro expõe agora as suas vísceras e a sua natureza corporal: o expectador aprende a vê-lo como jamais pensou fosse possível, posicionado entre a cabeça e o resto do corpo, podendo atravessá-lo diversas vezes e contemplar o corpo do animal como se fosse o seu próprio. Hirst revê assim, com angústia, o bucólico e pacífico espaço do campo, destruindo a imagem ideal. Existe surpresa e ironia na sua nova perspectiva.
A ousadia das peças exibidas levou a Royal Academy a abrir uma sala reservada somente a maiores de 18 anos, na qual se encontram os manequins de Jake e Dinos Chapman. Esses manequins são um frenesi de taras sexuais e apelo ao grotesco: mais de uma dezena de irmãs xifópagas se amontoam, nas posições mais diversas, com expressões inocentes, apesar de exibirem pênis no lugar dos narizes e ânus no lugar das bocas.
Em outro espaço, semelhante a um parque, um par de irmãs também xifópagas passeia. Celebração do Éden pervertido? Descoberta da infância? Realização dos instintos mais obscuros? Que pergunta ou que resposta poderá surgir para que o espectador se distancie de qualquer responsabilidade sobre o sentido da imagem que vê? As questões são muito urgentes, sobretudo no contexto de uma sociedade que aprofunda cada vez mais o seu conhecimento sobre matérias como pedofilia, abuso sexual de crianças por membros da família e até mesmo por instituições de caridade ou de proteção ao menor.
Jenny Saville é outra artista que confirma a tendência ao intenso realismo e à pesquisa do corpo que caracteriza a "geração Saatchi". Seus quadros a óleo, que exibem corpos maciços quase sempre solitários, indicam a influência das pinturas de Francis Bacon e de Lucien Freud. Seu "Plan" é um dos altos momentos da pintura britânica. Também emocionante é a estátua de silicone e acrílico feita por Ron Mueck, "Dead Dad", que produziu uma miniatura do corpo nu de seu pai sobre uma superfície branca, como se fosse o objeto mais longínquo e frágil possível.
A característica marcante de "Sensation" é o abandono de praticamente toda experiência abstrata. Os poucos exemplos que poderiam ser confundidos com algo próximo do abstracionismo representam, enfim, formas simbólicas do real. Outro elemento sempre atuante na exposição é o humor: mesmo nas peças mais pungentes e carregadas de tragicidade, o humor aparece, ainda que jamais atenuante. Às vezes, há um riso que questiona a matéria ou mesmo o estilo do objeto, como na escultura monstruosa e disforme de Paul Finnegan ("Untitled"), que calça dois singelos sapatos pretos.
Aos poucos, "Sensation" passa a receber as perguntas que toda exposição significativa merece: qual o rumo atual das artes britânicas e que características o definem? Há uma forte preocupação com a natureza corporal e, também, um desassombrado diálogo com a morte e com os temas da morbidez. É pequena a presença da crítica social. Em muitos casos, a crítica ideológica (a exemplo da representação da mulher ou a presença da religião) é feita, de modo mais ou menos amadorístico, por meio de piadas visuais. "Sensation" celebra o indivíduo e sua solidão. Não é pouco -e é mesmo uma das razões profundas que tanto incomodam o público da exibição.

A exposição:
"Sensation" está em cartaz na Royal Academy of Arts (Piccadilly, Londres, tel. 00.44.171.300-8000 ou 300-5760) até 28 de dezembro.

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