São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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Uma apologia da intuição

MÁRIO ALVES COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A Apreensão da Realidade Psíquica", de Paulo Cesar Sandler, primeiro volume (dois outros estão prometidos) é uma obra extremamente ambiciosa. Basta examinar o índice do primeiro livro (e dos dois outros, ao final deste volume) e percebe-se que nas suas páginas desfila praticamente toda a filosofia ocidental, de Platão a Bachelard (passando por Aristóteles, Hume, Hobbes, Bacon, Descartes etc.). Ali encontra-se, também, um exame amplo da ciência ocidental, além de comentários de algumas escolas artísticas e certos criadores.
Qual o objetivo do autor? Demonstrar a cientificidade da psicanálise, ou o que ele chama de "polinizações cruzadas" entre a psicanálise e outras ciências. Nas suas próprias palavras: "Haverá descobertas feitas por físicos, matemáticos, psicanalistas, artistas, místicos que possam ser semelhantes? Será que o que está variando é apenas o sistema simbólico-notacional utilizado por estes vários pesquisadores?".
Logo de início, fica claro que o autor não pretende aproximar a psicanálise da ciência positivista, ou aquela das causas finais e dos porquês (uma aproximação, segundo ele, religiosa), mas das concepções epistemológicas mais modernas, como a física quântica, a teoria dos fractais, Gõdel.
Num dos primeiros capítulos do livro, ele mostra que vários cientistas resolveram alguns problemas de suas teorias não por meio de raciocínios lógicos, mas por meio da intuição. Diz também que Melanie Klein e W.R. Bion não desprezaram o uso da intuição "enquanto parte da realidade psíquica". Num outro momento, ele menciona um teorema de Gõdel. Ele "demonstrou neste teorema que havia afirmações matemáticas em relação às quais não existia nem um procedimento que poderia determinar se elas eram verdadeiras ou falsas".
Seu comentário é que este teorema é particularmente interessante ao psicanalista, por não ser "positivo", e sim "negativo", por "deixar algo em aberto e desconhecido", equivalente ao "não-seio, portanto um pensamento" de Bion.
Nestes e outros exemplos do seu livro, por contiguidade e analogia, Sandler estabelece, realmente, contatos e paralelos instigantes entre a psicanálise e a física moderna, desafiando e provocando seu leitor ao diálogo. Mas algo fundamental deve ser lembrado: ainda que Gõdel toque, por meio de seu teorema, "na realidade do incognoscível e da intuição", assim como a psicanálise, ele, ainda assim, prova matematicamente esta afirmação, algo obviamente impossível para qualquer postulado psicanalítico.
No primeiro caso, mais uma vez, a intuição pode ser comum à física moderna e à psicanálise, mas a dos físicos é passível de prova matemática posterior. Várias intuições psicanalíticas são citadas até a exaustão (o objeto amado e o odiado são sempre o mesmo; ou então o "pensamento sem pensador, a espera de um pensador para ser pensado"), sempre na tentativa de aproximar a psicanálise da ciência moderna: embora o livro seja dividido em "conversas", estas repetições excessivas não se justificam.
Há ainda outros probleminhas. Por exemplo, o filme "Giordano Bruno" (está escrito Giovanni) foi atribuído (pág. 353) a Bernardo Bertolucci, mas a direção é de Giuliano Montaldo.
Outra falha, em um livro que cita tão grande volume da cultura ocidental, é a ausência de um índice onomástico. Quem sabe este problema pode ser corrigido em uma eventual segunda edição e nos dois volumes subsequentes.

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