São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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O futuro da biologia

MANFRED EIGEN

Vivemos em uma sociedade que se esquiva do risco. Chegará um momento em que, por essa razão, ela fechará as portas para a ciência e especialmente para a pesquisa básica. Mesmo agora, não me surpreenderia ver um adesivo no vidro de trás de um carro com o dizer: "Pesquisa básica -não, muito obrigado!", enquanto um gás cinza azulado emana do seu escapamento. O que alguns membros do movimento de proteção aos animais estão fazendo pode ser no mínimo rebaixado a esse nível. Os oponentes da energia nuclear estão felizes com a eletricidade que flui das tomadas de suas casas. Não podemos fazer nada útil sem, simultaneamente, assumir riscos.
Deixar de fazer qualquer coisa pode ser muito mais prejudicial a longo prazo. Precisamos aprender a pesar as probabilidades, e lemas como os do adesivo do carro não ajudam muito nesse sentido.
Quando falo sobre o futuro da pesquisa biológica, o importante vai ser discutir os crescentes problemas da avaliação de riscos, da responsabilidade e da conduta ética. Porque o principal objeto de estudo da pesquisa biológica é o homem e seu ambiente, este "seu" significando relativo ao homem. Consequentemente, os resultados da pesquisa são relevantes para todo mundo.
Habilidades super-humanas
Não quero tentar fazer previsões gerais do século que está por começar e muito menos do próximo milênio. Segundo Friedrich Dürrenmatt, os problemas são totalmente resolvidos apenas quando imaginamos os piores resultados possíveis. Os futurologistas, é claro, são capazes de descrever apenas as possibilidades mais promissoras.
Poderemos explorar a natureza genética do homem mais do que nunca sonhamos, porque existirão máquinas capazes de ler os 3 bilhões de letras da herança humana em um mês. Isto permitirá, em particular, a realização de estudos comparativos.
Da mesma forma, poderemos determinar a sequência genética de muitas outras formas de vida para então sermos capazes de desvendar a nossa própria origem evolucionária. Poderemos sondar o cérebro humano e construir computadores que de longe superam o cérebro em muitas tarefas. Não acredito que algum dia teremos nas mãos um computador que sequer se aproxime do cérebro humano em todas as suas capacidades, mas um cérebro e computador conectados mostrarão habilidades "super-humanas".
Não poderemos cristalizar um homúnculo, mas robôs serão investidos de poderes até agora encontrados somente no reino biológico. Chamar isto de "vida artificial" é apenas uma questão de gosto.
Poderemos curar o câncer, porque estamos descobrindo um número cada vez maior de suas causas. Além disso, quanto às doenças cardíacas, seremos capazes de fazer diagnósticos precoces, permitindo que a intervenção médica se realize a tempo. Porém, no fim, será irrelevante de que doença vamos morrer, porque acredito que futuramente a nossa idade mal excederá os cem anos. Não precisamos realmente nos perguntar se as cidades de amanhã estarão ou não sob uma cúpula de vidro e terão uma atmosfera artificial.
Mas hoje deveríamos, com certeza, nos preocupar com o seguinte: onde vamos conseguir toda a energia eventualmente necessária para manter uma economia de reciclagem? Manter o ar e a água limpos é uma tarefa limitada pela alta produção de entropia. Uma precaução oportuna para o futuro é essencial aqui. Evidentemente, existirão muitas descobertas e invenções que neste momento desafiam a nossa imaginação. É exatamente por essa razão que qualquer previsão detalhada sobre o futuro será incorreta. Estamos na mesma posição em que Carlos Magno teria se encontrado se os seus contemporâneos tivessem feito a ele perguntas sobre o mundo no século 20.
Apesar disso, um prognóstico é razoavelmente certo: se a humanidade se encaminha para o melhor ou para o pior vai depender do homem finalmente aprender o que ele não conseguiu aprender nos cinco milênios de sua história cultural, ou seja, agir racionalmente e de modo sensato no interesse da humanidade e elaborar normas de conduta bem definidas.
Organicidade
Tais normas são análogas a um programa genético e precisam ser estabelecidas valendo para todos nós. O homem se encontra no mais alto degrau da escada da evolução. Digo isto não porque não consiga imaginar outra criatura mais perfeita, mas porque, com o homem, a evolução atingiu uma nova plataforma fora do alcance de qualquer outro organismo, de onde a evolução precisa continuar de maneira radicalmente nova.
Operando com base na seleção, a evolução exige a contínua reprodução, sujeita à mutagênese, da informação fixada nos nossos genes como tipos de impressão.
Novas vias de comunicação entre células surgiram com a formação de estruturas e redes celulares. Estas foram inicialmente mediadas por sinais químicos interceptados por receptores específicos e finalmente por sinais elétricos recebidos por sinapses e passados para a próxima célula.
Desta forma, um comportamento geral correlato de um sistema celular diferenciado pôde se desenvolver, pré-programado no genoma apenas no seu layout. É a seleção que assegura que o layout opere a favor do organismo como um todo.
Isto é incompatível com células individuais ou com órgãos funcionando uns contra os outros. Tal antagonismo somente pode assumir a forma de degenerações patológicas como o câncer. No sistema nervoso central, a comunicação intercelular deu origem a uma linguagem interna que controla nossos comportamentos, emoções, disposições e sentimentos. Até mesmo essa habilidade tornou-se geneticamente ancorada e tem sido selecionada para não agir contra a espécie.

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Um olhar de relance para o estado atual do mundo provavelmente nos deixará pessimistas. O futuro da humanidade não será decidido no nível genético. Precisamos de um sistema ético de ligação entre todas as pessoas

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É dessa maneira que o homem surgiu durante a evolução; esse comportamento geneticamente programado, individualista e espécie-específico é inerentemente egoísta, baseado na competição e na auto-afirmação. Em casos em que aparece como altruísta, ele acaba sendo, a longo prazo, vantajoso para a espécie ou clã, o que, por sua vez, é de alguma forma vantajoso para o indivíduo.
Foi dessa forma que o homem desenvolveu uma faculdade específica, diferente da de outros primatas, que lhe permite alcançar a formalização da linguagem interna codificada primeiramente nas descargas das células nervosas. Essa formalização não apenas facilita a comunicação entre membros de uma espécie, mas também é a base da nossa capacidade de pensar, de registrar resultados para o benefício da humanidade e legá-los às gerações seguintes por escrito.
Isso implica um novo plano de transferência de informação, parecido com o plano original da informação genética, que deu uma qualidade totalmente nova à química. No plano da mente humana, uma nova forma de evolução pode acontecer: a evolução cultural da humanidade.
Entretanto, aqui reside o problema-chave. A humanidade não é algo como um organismo multicelular, em que cada célula leva sua vida individual, mas assumiu um compromisso, por meio da legislatura genética, para o bem da coletividade celular.
A informação cultural não é herdada pelo indivíduo, assim como tampouco o é o comportamento socialmente aceitável. Apesar da evolução cultural da humanidade, que vem durando milhares de anos, as pessoas ainda fazem guerras e não menos cruéis que as do passado.
Iludimo-nos ao pensar que o comportamento socialmente aceitável é algo natural e que o comportamento anti-social, ao contrário, é algo patológico. O socialmente aceitável é a norma apenas no sentido original da palavra em latim, que significa regra ou regulamento.
Estamos enfrentando um verdadeiro dilema, porque as tentativas anteriores de submeter a liberdade individual a imposições, rebaixando o indivíduo para um status semelhante ao de uma célula sem vontade dentro de um todo orgânico sob controle central, têm apenas prejudicado a humanidade a longo prazo e até resultaram na aniquilação de partes da coletividade humana.
Esses experimentos falharam em parte porque o novo organismo não era a humanidade inteira, mas apenas um certo grupo, representante de interesses específicos que frequentemente violaram os direitos humanos básicos. Em parte falharam porque as "células líderes", as "células-cérebro" desse grande organismo, eram na maioria indivíduos incapacitados, auto-obcecados ou egoístas, essencialmente interessados em exercer o poder. O resultado foi um sofrimento incomparável.
Ideologias não podem substituir a razão. Todos os grupos políticos que defendem a disciplina partidária deveriam se dar conta disso. Eles, é claro, defendem ideais que têm um fundamento válido, dizem ser socialistas -quem não apoiaria uma consciência social?- ou partidos verdes -quem não gostaria de manter o ambiente saudável?- ou cristãos -quem desejaria um mundo sem compaixão ou caridade? Isto se aplica igualmente a todos aqueles que querem colocar a liberdade individual acima de tudo.
Cada um desses motivos, elevado ao pedestal de doutrina, vai contra nosso bom senso, que, a propósito, envolve não apenas nosso intelecto, mas também nosso sistema límbico, nossos sentimentos e emoções. Mesmo no futuro, não poderemos de maneira alguma delegar nossas decisões a um computador. Um olhar de relance para o estado atual do mundo provavelmente nos deixará pessimistas.
A primeira metade deste século se confrontou com duas guerras terríveis. E que lição aprendemos? Nada irá mudar se não basearmos nossas decisões na razão, aceitando a humanidade como um imperativo moral.
O futuro da humanidade não será decidido no nível genético. Precisamos de um sistema ético de ligação entre todas as pessoas. É aqui que a evolução, uma evolução do indivíduo para a humanidade, aguarda sua consumação.

O texto acima foi extraído do livro "O que É Vida? - Os Próximos 50 Anos" (Unesp e Cambridge University Press, 222 págs., R$ 22,00, tel. 011/223-9560), organizado por Michael P. Murphy e Luke A. J. O'Neil, com tradução de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira.

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