São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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Onde reside a graça do estilo "casseta"?

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

Primeira cena: Fernando Henrique faz um de seus pronunciamentos na TV. A imagem é dele, a voz é dublada. O texto segue mais ou menos assim: O Plano Real é um sucesso. O povo está comendo, os trabalhadores estão trabalhando, os agricultores estão plantando. Mas a maior conquista do Plano Real é a Thereza Collor, que está namorando meu filho. Dá-lhe, garoto.
Cena dois: dessa vez quem está na tela é um personagem que imita o presidente. O sósia de FHC fala às câmeras: Meu filho, Paulo Henrique, resolveu namorar a Thereza Collor para provar que depois do Plano Real o brasileiro passou a comer melhor.
Ambas as cenas foram ao ar na última terça-feira, no "Casseta & Planeta, Urgente!". Seria difícil para alguém admitir honestamente que não são engraçadas. Gargalhamos ao vê-las na tela da Globo. Mas não são cenas apenas engraçadas. Fica-se também com a clara sensação de que dessa vez os rapazes extrapolaram.
Tudo bem que essa seja uma tradição do grupo. Quando ainda pertenciam ao circuito alternativo do humor, na sua fase pré-global, eles faziam manchetes do mesmo teor no extinto "Planeta Diário". Quase obrigatório lembrar daquela, em plena vertigem do Plano Cruzado: "Presidente está indo longe demais -Depois de ir à China, Sarney irá à merda".
Em relação ao programa da última semana, há pelo menos três pontos a considerar. Primeiro: os "cassetas" esculhambariam o presidente dessa forma num contexto de lua-de-mel do Real com o país? O fato de que a Globo tenha permitido essa avacalhação é um sinal de que FHC caiu definitivamente na vala comum da política, de que estaria se "sarneyzando"? É isso o que parece. Aliás, foi o que o PFL disse em coro na semana do crash.
Segundo ponto: é evidente que a Globo continua, até onde for conveniente, governista. O fato de que a política tenha praticamente evaporado do "JN" é uma evidência disso. Arnaldo Jabor como comentarista "político" é outra. O governismo do noticiário, no entanto, convive com o espírito oposicionista (e de porco) dos "cassetas". É como se não houvesse espaço para oposição na Globo se não na forma do escracho. A lógica é: a gente adere e esculhamba, tudo ao mesmo tempo, desde que seja cada macaco no seu galho. Os "cassetas" seriam uma válvula de escape funcional para compensar o esforço adesista.
Terceiro ponto: por que, afinal, o estilo "casseta" colou e foi absorvido pela sociedade? Marcelo Coelho, que não tolera o estilo dos rapazes, escreveu (há três anos, é verdade) que são quase fascistas. É um fato. Tudo que se pareça com preconceito, intolerância ou selvageria entra no cardápio da turma.
Mas eles, desde o princípio, nunca foram "populares", sempre se dirigiram de modo mais ou menos cifrado a uma classe média urbana, sobretudo carioca. O sucesso nacional, via Globo, talvez esteja relacionado ao fato de que o brasileiro simplório lá no fundo aprecia um racismo mitigado, ou "cordial". Os pobres riem quando Miguel Falabella (convidado de honra do último "Casseta") diz que eles cheiram mal, são desdentados etc; os negros se divertem quando são tratados como burros de carga; as empregadas domésticas acham simpático o fato de aparecerem na TV como se fossem escravas. Por aí vai.
Inteligentes que são, os "cassetas" podem dizer que exploram o material que o país lhes fornece, nada mais. É claro que eles representam um choque de realidade numa área que era dominada até há pouco por três ou quatro figurões que praticavam um humor ao mesmo tempo popularesco e pomposo. Como, mal comparando, a Semana de 22 aproximou a arte do país real e mostrou o que havia de postiço e empolado na linguagem dos bacharéis. Mas, assim como o modernismo foi mistificado, creio que também no humor televisivo estamos substituindo uma forma de preconceito por outra, mais moderninha. Pode parecer passadismo, mas que saudades da graça inofensiva, simples e no entanto genial de um Didi Mocó trapalhão.

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