São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 1997
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Americanos se sentem muito inseguros

JORGE CASTAÑEDA

A recente derrota do presidente norte-americano, Bill Clinton, em sua tentativa de conseguir do Congresso a autorização do "fast track", para poder negociar acordos de livre comércio, pode ser interpretada de várias maneiras. A mais simples, consiste em enxergá-la como um revés momentâneo e reversível e acreditar que, em 98, o líder norte-americano poderá submeter à Câmara uma nova iniciativa que será aprovada.
Um segundo enfoque considera que a decisão é duradoura e que as autoridades mexicanas se gabaram de ter demonstrado astúcia ao negociar o Tratado de Livre Comércio (Nafta) com os EUA.
O México é agora o único país da América Latina que conseguiu tratado de livre comércio sem maiores restrições.
Essa versão não está destituída de alguma parcela de verdade: a janela de oportunidade que se abriu em 1993 acabou se fechando rapidamente e é pouco provável que volte a ser aberta. Talvez tenhamos pago um alto preço pelo tratado, mas era esse tratado ou nenhum.
Em terceiro lugar, há a visão pessimista, à qual poderíamos chamar de "modernizante", que consiste em criticar o protecionismo provinciano da minoria democrata no Congresso, que obstruiu o avanço dos partidários do livre comércio. Os adversários do "fast track" simplesmente não compreendem a globalização e as novas regras do jogo.
Travam batalhas de retaguarda contra o futuro e o curso da história; podem obter algumas vitórias no curto prazo, mas a longo prazo sua causa e sua luta estão fadadas ao fracasso. Essa é a postura da tecnocracia mexicana, do "The New York Times" e da direita norte-americana vinculada às empresas.
Mas existe uma quarta maneira de visualizar o assunto, mais otimista. Consiste em compreender que, se líderes como Richard Gephardt e David Bonnior se opuseram tão veementemente ao "fast track", e se tantos ativistas e políticos mergulharam fundo na luta contra a autorização do "fast track", isso reflete uma mudança de ambiente ou clima em seu país.
Na realidade, muitos comentaristas favoráveis ao livre comércio opinaram que, por trás da derrocada de Clinton, se desenha uma contradição social real que se expressou na votação. De fato, a economia norte-americana está mais saudável e competitiva do que nunca, mas os norte-americanos se sentem mais inseguros e menos prósperos do que nunca.
A razão dessa ambivalência foi bem resumida por Lester Thurow: "Provavelmente nenhum país que não tenha passado por uma revolução ou uma derrota militar seguida de uma ocupação tenha vivido uma ascensão tão rápida e ampla da desigualdade como os EUA nas duas últimas décadas." As famílias ganham o mesmo porque trabalham muito mais; as distâncias entre cada segmento da sociedade se ampliam; a concentração de renda e riqueza aumentam.
Entre outros motivos, os americanos atribuem a culpa dessas desgraças ao livre comércio, aos acordos comerciais e à globalização. Acreditam que a fuga dos empregos em direção à Ásia, ao México e ao Caribe contribuiu para as tendências descritas no parágrafo anterior. A seu modo, têm razão. O número absoluto de empregos transferidos para o exterior talvez não seja tão grande, mas a ameaça de se fechar uma fábrica e transferi-la para Ciudad Juárez se tornou muitíssimo mais concreta.
O verdadeiro perigo não consiste no fechamento de fábricas e na perda de empregos, mas na pressão redutora sobre os salários que os patrões podem exercer, ao acenar com a ameaça da transferência. Para os trabalhadores norte-americanos, a única maneira de evitar a queda em seus rendimentos é impor limites às importações ou por meio do aumento paulatino dos salários dos trabalhadores que competem com eles, isto é, os operários mexicanos ou asiáticos. O primeiro é impossível no mundo moderno; o segundo é viável, desde que sejam impostas as condições que o permitam. Os grupos que se opõem ao "fast track" brandem estatísticas a esse respeito que, se forem corretas, são assustadoras: desde a aprovação do Nafta, em 1993, os salários reais médios na indústria manufatureira no México caíram 31%, enquanto a produtividade no mesmo setor cresceu 32%.
Vista desde essa perspectiva, a hostilidade dos setores mais progressistas da sociedade norte-americana ao "fast track" não é reacionária ou anacrônica, e sim faz parte de uma nova consciência da necessidade da reorganização social. E, como vêm sugerindo vários observadores desde 1993, e mais recentemente James Fallows, diretor do "US News and World Report" e possivelmente o mais inteligente e perceptivo jornalista dos Estados Unidos, as posições tomadas por pré-candidatos presidenciais como o próprio Gephardt poderiam constituir-se nas bases de um novo conjunto de andaimes políticos: o surgimento de uma social-democracia norte-americana, finalmente. Nada garante que isso vá acontecer nem que essa interpretação não peque por excesso de otimismo ou por interpretar seus próprios desejos como a realidade, mas ela permite que se veja a situação sob uma ótica diferente.
É uma ótica que começa a parecer menos extrema ou ilusória que em outros momentos, graças à nova crise financeira mundial. Algumas publicações lúcidas, porém conservadoras, como "The Economist", a descartam, mas outros setores já atribuem certa credibilidade a ela. Trata-se de uma reformulação da velha tese marxista da tendência inerente ao capitalismo ao excedente de oferta e subconsumo, agravada agora pelas novas características da globalização. William Greiber, em seu livro "One World, Ready or Not" (Um Só Mundo, Estejamos ou Não Preparados para Ele), é quem conferiu a maior atualidade a essa tese, que, com a queda das bolsas, das moedas e dos sistemas bancários asiáticos (e latino-americanos), já não se configura tão pouco realista quanto antes. Os efeitos deflacionários do efeito dragão podem corroborar essa idéia.
A novidade que confere essa credibilidade renovada ao antigo lamento marxista se encontra justamente no ponto mencionado anteriormente: os que produzem já não consomem o que produzem e, portanto, não têm por que ganhar o suficiente para fazê-lo. Os operários que trabalham nas fábricas automotivas de Ramos Arizpe e Aguascalientes não são obrigados a receber salários que lhes permitam comprar os carros que produzem, porque os destinatários desses carros não são eles, e sim os operários dos países para os quais eles serão exportados. Os operários indonésios que produzem os tênis Nike ou os chineses que produzem microchips para a Motorola não ganham o suficiente em um ano para comprar um par dos tênis anunciados por Michael Jordan. Mas isso não importa, porque os consumidores desses tênis são os jovens afro-americanos e latinos dos guetos norte-americanos. Apesar disso, se a produtividade dos trabalhadores "pobres" continuar subindo ou se os custos das mercadorias seguir caindo, e seu próprio consumo continuar estagnado, daqui a pouco será impossível desafogar toda a produção nos países "ricos", a menos que pare a parte da produção que ainda é realizada nesses países.
Assim, a desvinculação entre produtores e consumidores, gerada pela globalização, também pôs abaixo os mecanismos de autocorreção ou auto-regulamentação dos mercados. Produz-se demais em alguns países e consome-se de menos em outros. A solução consiste em voltar a vincular os dois processos por meio de um aumento do consumo nos países "pobres", desde o México até a China, e em continuar produzindo alguma coisa nos países ricos.
O surgimento de um novo "New Deal" norte-americano pode representar a oportunidade de se colocar essa transformação em prática. Também se confirmaria uma idéia antiga: os vizinhos e parceiros dos Estados Unidos se dão melhor quando esse país se volta para dentro e aplica sua formidável energia, imaginação e ousadia para a solução dos próprios problemas, e não quando tenta reconstruir o mundo à sua imagem e semelhança.

Tradução de Clara Allain

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